Os últimos tempos têm sido profícuos em desfazer a perspetiva de um mundo pintado a preto e branco. A tentativa de divisão da realidade em dicotomias é compreensível e é humana: o mundo seria muito mais fácil de compreender se conseguíssemos separar sempre os bons dos maus, o certo do errado, a luz das trevas e a esquerda da direita. Embora pelas redes sociais e pelas caixas de comentários dos sites esta continue a ser a lógica dominante, a realidade obriga a que se perceba que há várias gradações de cinzento e de luz e múltiplas cores e tonalidades num mundo cada vez mais (ou será melhor dizer, outra vez?) multipolar e complexo.
A morte de Fidel trouxe este fim de semana para a praça pública níveis de argumentação bipolar: é o adeus ao ícone, choraram uns; foi-se um assassino, gritaram outros. Olhar Fidel apenas pelos olhos do herói revolucionário, que uma certa intelectualidade de esquerda alimentou, é ver apenas metade do que foi o seu legado. Sim, Fidel teve o sonho de libertar Cuba da ditadura de Fulgêncio Batista subjugada aos Estados Unidos da América, de trazer educação, pão e saúde. E em busca do sonho (ou da ilusão comunista), toldou a liberdade, matou e torturou, subjugou, impôs a miséria e perpetuou-se no poder. E para que serve trazer a educação ao povo se o proibimos de pensar? Fidel não é menos ditador do que foi Pinochet, tal como não há ditadores bonzinhos e ditadores mauzões. Acho que Gertrude Stein me perdoa se lhe adaptar o verso (“rose is a rose is a rose”): um ditador é um ditador é um ditador, mesmo que os ideais que o motivem possam ser extraordinariamente belos.
A mesma tentativa ilusória de reduzir a realidade a preto e branco acontece quando se tenta encaixar Trump num debate tipo “esquerda versus direita”. Fazê-lo – e muitos e até bem-pensantes o fizeram – é não perceber nada acerca do fenómeno Trump e a sua complexidade. Se nalguns pontos o seu discurso se aproxima de um certo conservadorismo e liberalismo de direita, noutros tem enormes pontos de contacto com a esquerda mais radical, como no tema do fecho das fronteiras, no isolacionismo e no protecionismo bastante “iliberal”. Trump é acima de tudo um populista (como populista foi o nível de argumentação no Brexit), mas o que é isso afinal do populismo?
O El País definiu-o recentemente como “uma ideologia rasa que considera que a sociedade se divide em dois grupos homogéneos e antagónicos, o ‘povo simples’ e a ‘elite corrupta’”, um discurso que pressupõe que “os dois grupos têm interesses irreconciliáveis, o que leva a enfatizar a soberania nacional ou popular”. Ou seja, o populismo dá, necessariamente, uma visão redutora e a preto e branco da realidade. Neste sentido, o Podemos espanhol é tão populista como a Frente Nacional francesa – têm em comum o facto de dirigirem os seus ataques contra uma elite liberal que acreditam ser responsável por todos os problemas e diferem apenas no tipo de questões e discurso que escolhem e nas soluções que apresentam para as resolver.
O resultado das primárias à direita para as eleições presidenciais francesas também mostra bem quão complexa e multicolor é a realidade de hoje. Quem foi um dos grandes beneficiados com a vitória do conservador de direita François Fillon? O russo Vladimir Putin. No duelo final, ganhe ele ou Marine Le Pen – e ambos são amigos do Presidente russo e com discursos próximos da propaganda do Kremlin –, tudo indica que o próximo Presidente francês será parte de um eixo que une Moscovo, Paris e Washington, que apoia Putin e acalenta, por exemplo, Bashar al-Assad e um discurso anti-islamita. Tocam-se os extremos, e perde-se assim em liberalismo e preocupação com os direitos humanos o que se ganha em populismo. Frau Merkel, aquela a quem tantos chamaram obstinada, protofascista ou nazi, é hoje um dos últimos bastiões de humanismo entre os grandes líderes europeus. Irónico, não?
Convém dizer que é também graças a esta perspetiva redutora da realidade que muitos millennials se sentem cada vez mais afastados da política. Esquerda e direita são para eles conceitos avulsos, recusam os partidos e os dogmas (tal como recusam a marca pela marca) e interessam-lhes as ideias e as pessoas. E, enquanto não se começar a olhar para o mundo desta forma, mais espaço de manobra terão os agentes fora do sistema para explorar os filões de descontentamento.
Editorial publicado na edição 1239 da revista Visão