Uma das experiências mais frequentes por que qualquer doente passa é o de lhe serem aconselhadas por dois médicos diferentes duas soluções diversas para o seu problema de saúde.
Na maior parte das vezes, este facto justifica-se pela variabilidade das interpretações dos médicos em relação a um mesmo problema clínico, os seus conhecimentos científicos sobre a patologia específica, a sua experiência de situações semelhantes, o grau de eficácia relativa das diversas opções de tratamento (por exemplo) e até as expectativas dos doentes. Ou seja, em muitas situações não existe uma solução clara e inequívoca, podendo haver alternativas igualmente válidas, ainda que diferentes.
Nos anos 80, as autoridades inglesas descobriram que a probabilidade de uma doente com cancro da mama ser tratada, e com que tipo de intervenção, dependia do local onde essa doente vivesse: nuns lados era predominantemente operada, noutros fazia radioterapia, noutras ainda fazia quimioterapia. E isto para o mesmo tipo histológico de cancro (i.e. o mesmo tipo de célula tumoral), com o mesmo estadio de desenvolvimento e com a mesma idade da doente. Este fenómeno, que ficou a ser designado por “tratamento por código postal”, foi umas das bases do movimento da qualidade em saúde a nível mundial.
Este fenómeno que temos estado a falar chama-se variação da prática clínica, que se define como uma prática utilizando, em doentes semelhantes (na doença que têm e no seu risco basal), testes diagnósticos diferentes e esquemas terapêuticos diversos. Isto é: as abordagens práticas não são explicáveis pelas diferenças clínicas dos doentes, mas sim pelas diferenças nos padrões de prática dos médicos.
É fácil de compreender, mesmo para os não especialistas, que a variação da prática clínica constitui um problema importante em termos de qualidade em saúde, já que é difícil de aceitar que dois processos tão diferentes possam ambos ser adequados ao doente específico. Entre nós, os grupos da Escola Nacional de Saúde Pública e do Centro Hospitalar Lisboa Ocidental publicaram diversos dados sobre diferenças muito marcadas no nosso SNS, desde as taxas de internamento hospitalar às cirurgias coronárias, das taxas de cirurgia após fractura do colo do fémur às de cesarianas, para só mencionar algumas áreas clínicas.
Chegados até aqui, será então de perguntarmos qual é o mais importante: aumentar os recursos nas áreas de menor intensidade clínica, precisamente as que sub-tratam os doentes e a que todos os doentes deveriam ter acesso (por ex. não modulando correctamente o colesterol, não tratando efectivamente a diabetes ou a depressão), ou em alternativa reforçar as práticas que tratam correctamente os doentes (na base da melhor evidência científica e da experiência profissional), apoiando-as com os recursos disponíveis?
A resposta parece evidente, mas na realidade não o é.
E isto porque, á semelhança de muitos outros países, existem áreas do nosso SNS em que que os padrões de prática se caracterizam por ofertas de cuidados com baixa probabilidade de induzir melhoria da qualidade de vida ou aumento da sobrevivência, com mais risco do que benefício e que os doentes provavelmente não desejam. Incluem-se nestes cuidados intervenções sem eficácia comprovada ou com uma relação benefício-risco ou custo-benefício com perfil desfavorável.
Estas áreas designam-se como os da sobreutilização de recursos (em oposição às já mencionadas subutilização ou utilização racional) e caracterizam-se por uma grande intensidade de testes diagnósticos e consequentes tratamentos (Dartmouth Atlas of Health Care). Este é o conceito paradoxal da saúde, em que quanto maior a oferta, maior o consumo: quando há muita oferta de serviços – especialistas, consultas médicas, tecnologias de imagem, camas hospitalares, check-ups, etc. – há subsequente consumo elevado dos mesmos.
Neste caso o que se verifica é a ausência de consenso de quais serão as melhores práticas para todas as possíveis situações clínicas, o que favorece este tipo de consumerismo médico, raramente baseado na evidência e muito prevalente em certos subsistemas de saúde. Este tipo de cuidados é claramente muito mais dispendioso e os doentes – apesar de eles próprios esperarem maior intensidade de cuidados – acabam por classificar as suas experiências como piores, passando mais dias internados em hospitais, a serem vistos por muito mais médicos, a fazerem muito mais testes em sistemas mais desorganizados e com resultados qualitativamente menos bons (JAMA Intern Med 2017;177:675-682). Por exemplo, existe evidência de excelente qualidade demonstrando uma maior mortalidade nos doentes com mais de 80 anos, quando os seus factores de risco cardiovascular (hipertensão arterial, colesterol ou diabetes) são tratados tão intensamente como os de doentes muito mais novos (J Am Geriatr Soc 2016;64:1425-1431). Por outras palavras, em idades avançadas os doentes devem ser tratados gentilmente, com pouca intervenção global e com muito cuidado com as reacções adversas dos medicamentos.
Após o exposto, a resposta à questão inicial referente a um maior investimento no nosso SNS deverá reflectir em 1º lugar a redução do financiamento das práticas que se classifiquem como de sobreutilização, simultaneamente com um aumento das que se provem ser insuficientes (subutilização de recursos). E, especificamente neste caso, não será necessário financiamento de novo, antes uma redistribuição dos recursos.
É fácil fazer isto?
Claro que não, já que requer um sistema de informação muito rigoroso sobre os padrões de prática, classificação inequívoca desta em relação à melhor evidência científica de base, aceitação pelos profissionais de saúde como sendo exagerados e com resultados de fraca qualidade. Mas parece-nos que sob o ponto de vista ético não há alternativa: antes de pedir mais financiamento, devemos primeiro garantir que o que temos é bem gasto em termos dos resultados finais para os doentes.