Talvez um dos tópicos mais interessantes da cultura contemporânea, no cruzamento entre a formulação científica, a arte e até a cultura popular, resida na forma como, através da psicologia, fomos ao Mundo Clássico, mais propriamente ao teatro grego, buscar instrumentos que nos remetem à formulação do indivíduo, àquilo que ele tem de inalienável, de único, de irrepetível.
A persona, a máscara, aquilo que nos apresenta perante o outro, não é mais que uma quotidiana representação de um lugar social, de um espaço numa família, de um nicho num ecossistema de uma forma de viver, de vivenciar o mundo, de nos colocar no meio dos outros e de nos apresentar, quer perante esses outros, quer -e em especial- perante nós mesmos.
O palco, lugar onde ocorre a tragédia grega, é aí, nessa herança de há 2500 anos, um local de um ritual religioso dedicado a um deus, Dionísio. Vivenciando no palco os dramas da vida do deus, cada indivíduo vivenciava no seu interior essa mesma dramaticidade: o psicodrama.
O ator, ao colocar uma persona, vai muito mais além de mesmo. O ator como que encorpora naquele momento o deus, que está a ser vivenciado naquela liturgia que traz o mito para a ação, transformando-o em rito. E o rito é todo e qualquer momento em que tornamos transcendente aquilo que estamos a efetuar com gestos e palavras que, não sendo realizados naquele momento e naquele contexto, seriam perfeitamente banais.
Seria longa a deambulação em torno do que é que é ritualizar, ou mesmo, indo para os textos sagrados, o que é canonizar, o que é tornar canónico, o que é tornar irrepetível. Indo ao rito, como se definem os gestos, como se fazem as frases, como se congelam numa memória colectiva, os preceitos do que fazer, o como fazer, tornando por isso um momento especial, eventualmente sagrado.
Este palco, de sentidos, de sentimentos, de intensidades, é vivido de várias formas, em dois campos fundamentais: o actor e os espectadores. Centremo-nos nos segundos, o público que está do outro lado, não no palco mas na plateia. Enquanto público, não coloco uma máscara no meu rosto, não sou esse outro que, no palco, transmite uma mensagem cheia de subtilezas. Mas, estou de um lado de cá, aberto, predisposto, disponível, receptivo a receber e a acolher uma persona. E, portanto, a abrir as Caixas de Pandora de cada subtileza de outrem, a fazer a hermenêutica, a tornar minha a mensagem de um qualquer outro que está num palco a transmiti-la.
E é aqui que de facto o palco se transforma numa verdadeira liturgia. E transforma-se numa liturgia por diversas dimensões, sendo que a primeira é, obviamente, a que já referi: a do gesto oficiado por alguém que, naquele momento, tem o dom, o condão de dar uma dimensão especial ao momento. No fundo, o ator, o músico, mais não é que um oficiante, alguém que consegue dominar um tempo e um espaço transformando-os em únicos, irrepetíveis, dando àqueles que estão a assistir intensidades variadas, mas dando sempre isso mesmo: intensidades. É por isso que lá estão. Quer uns, quer outros.
Mas exactamente porque é de intensidades que estamos a falar quando de um concerto, de um espectáculo nos referimos, o fundamental da liturgia reside, não no oficiante que está em palco, transmitindo uma mensagem, mas exactamente nos que estão fora do palco e a recebem. E recebem-na de duas formas. Se, por um lado, assistir a um desses momentos mais não é que participar também dele. Por outro, é verdade que dum lado está um oficiante, mas é também verdade que do outro lado estão aqueles que permitem que o oficiante o seja. Não há ofício sem as duas partes.
Do lado do público não está o espectador, não está alguém que está espectável, parado. Pode aparentar, mas não. É receptivo, mas é, acima de tudo, participativo: a intensidade só acontece, se for lida, se for recensionada, não apenas recepcionada. E esta intensidade é, no fundo, aquilo que coloca todo e qualquer um que assista a um espectáculo numa dimensão de efectiva irmandade: iguais na posição de co-oficiantes porque acolhem e fazem a sua hermenêutica.
Mesmo que a mensagem seja complexa, mesmo que aqueles que estejam a assitir sejam complexos nas suas diferenças, nas suas heterogeneidades, a única garantia que podemos ter, é que todos os que estão a assistir a um espectáculo têm a capacidade, porque pertencem a uma espécie, de ser hermeneutas da mensagem que lhes está a ser transmitida. Cada um poderá reagir de uma forma completamente diferente, mas cada um reagirá.
De Dylan a Bono, os próximos meses, numa cronologia larga das festividades de Verão, serão muito ricos em momentos de palco, em liturgias da palavra, do gesto, da música. Mas, neste correr de pena, em que as intensidades deambulam entre a postura mais teórica e a recordação de momentos chave, tenho de recordar uma situação que me é significativa: depois de uns meses a protelar, respondi positivamente ao desafio e fui assistir a um concerto do Pedro Abrunhosa. Por questões simplesmente de calendário, fui a esse concerto no local mais inesperado: num dia de Agosto, na Serra da Estrela, em Seia, juntaram-se vários milhares de pessoas no meio de umas festas de verão para ouvir Pedro Abrunhosa. De facto, há algum tempo que ele me dizia que eu tinha que ir ouvir um concerto dele. E não tive qualquer desilusão.
E não tive qualquer desilusão porque o concerto foi bom. Mas o que mais me interessou não foi o facto do concerto ser bom. Tinha o Pedro como um exímio músico, intérprete de excepção, acompanhado por uma excepcional banda, portanto, se os meios técnicos não criassem problema algum, garantidamente seria um bom espectáculo. Esta era a parte esperada, garantida.
Mas o mais importante, para alguém como eu que se foca tanto a estudar os rituais, não foi a qualidade em si. O mais importante foi a forma como se criou a adesão. E era exactamente isso que o Pedro me referia em algumas conversas, instigando-me a ir assistir a um seu concerto. E a adesão de facto, é algo de imateral, mas que se materializa nos gestos, que se materializa nas posturas, que se materializa na gramática corporal e nas expressões que cada um toma e com as quais se expressa perante essa mensagem que está a vir do palco.
Poucas realidades geográficas seriam melhores que Seia, para ter uma heterogeneidade imensa no público que estava à minha volta. Gente mais nova, mais velha, gente que terá ouvido ao longo da sua vida músicas daquele autor, e gente que não terá ouvido, gente social, económica e culturalmente claramente muito diversa. Mas em todos eles era possível ver em certos momentos: uns nuns, outros noutros, uma adesão, uma reacção, uma não apatia. E é aqui que pode residir uma dimensão fundamental do que é um ritual na contemporaneidade.
Um ritual é um conjunto de gestos num determinado lugar que provoca uma adesão incondicional, uma não apatia, porque é uma participação em que há, no indivíduo, uma hermeneutica a decorrer, que o leva a essa adesão de forma clara, significativa, expressiva, até.
Perante certos momentos de um concerto, por exemplo, de Abrunhosa, eu sou levado a pensar que efectivamente estamos num universo de sentidos onde a estética não é aquilo que nós tantas vezes designamos apenas como fruição, mas a estética é exactamente o oposto: obriga a sair do espaço de conforto, interpela.
A estética é o retirar-nos de uma imobilidade, da dita apatia, transportar-nos, empurrar-nos para uma tomada de partido. Um simples esgar no rosto, um simples trejeito no sobrolho, é a demonstração de que não se ficou indiferente: com pensamento ou com emoção, deu-se cognição. É a demonstração de que, para o bem ou para o mal, a mensagem ecoou de alguma forma e, portanto, temos não apenas um diálogo, mas como Raimon Panikkar diz, temos um “duálogo”: se um lado emitiu uma mensagem, o outro lado não apenas a recebeu fisicamente, como a acolheu através de uma tensão entre razão e emoção, uma cognição que implicou uma reacção.
E esta reacção alimenta esse mesmo diálogo, esse mesmo duálogo, porque não é unívoca, mas é biunívoca. O ritual existe exactamente num campo onde a “tuificação” do que está a acontecer tem lugar porque, através de códigos conseguimos compreender, conseguimos reagir, conseguimos criar uma gramática que nos permite a aceder a um outro, neste caso a uma persona que nos está a ser transmitida.
O espiritual não nos remete apenas para um sentido cristão mais estrito, uma incorporação de um Espírito Santo ou, num sentido até mais lato ou mais boémio, para a ingestão de qualquer produto que nos crie um estado alterado de consciência e nos torne “espirituosos”. O espiritual é a capacidade de uma mensagem ser entendida no mais íntimo e provocar uma reacção. O espiritual é a capacidade de uma palavra, de um som, de um gesto, não nos deixar indiferentes e de, ao não nos deixar indiferentes, nos obrigar a um gesto eventualmente de transcendência – não porque é uma elaborada reflexão teológica sobre um assunto qualquer, mas porque é o pequeno trejeito que não se exprime mediante tratado algum. A música, seja a de Pedro Abrunhosa, ou outra qualquer, que em certos momentos nos possa provocar uma emoção, é um instrumento de espiritualidade.
A essência do espiritual residirá, quem sabe, no pequeno gesto de um segundo que tem mais profundidade na demonstração da essência de um Ser, que qualquer reflexão teórica que possamos elaborar sobre ele. E é aqui que, de facto, voltando ao concerto de Pedro Abrunhosa, conseguimos encontrar uma irmandade plena por parte daqueles que, nas suas diferentes leituras, reagem de diferentes formas, com diferentes trejeitos, com diferentes aplausos, com diferentes euforias, choros, e cantares, porque participam nessa liturgia do palco, tornando o seu corpo o palco dessa mesma liturgia.
Se para o artista que está no palco, o seu corpo é o instrumento da expressão de uma liturgia para o outro, a matéria que induz a hermenêutica, o sentimento, para cada um dos espectadores, as suas mãos, os seus olhos, a sua boca, todo o seu corpo movimentando-se ou estando estático, aplaudindo, levantando os braços, gritando ou estando calado, é a sua forma de participar nesse momento especial que ganha essa dimensão de poder aceder a um lado e a um campo indizível do seu Ser.
Dificilmente conseguiríamos tirar mais do que duas palavras à maioria dos espectadores que em Seia assistiram àquela hora e meia de concerto. Se calhar muitos deles, simplesmente diriam “gostei” ou “foi bom”. Contudo, se gravássemos essa hora e meia do rosto de cada um desses indivíduos, teríamos um sem número de expressões e vivências que vão muito além dessas duas palavras que verbalizariam como síntese aquela hora e meia.
E é aqui que de facto se encontra a dimensão do espiritual. Não na palavra, mas exactamente naquilo que a palavra não consegue transmitir, ou naquilo que a palavra não consegue esgotar. Estamos para além do que é cognoscível apenas pelo pensamento, estamos no campo da pura vivenciação. Espiritual é vivenciar, é viver, é intensidade.
E aqui eu só posso agradecer a todos os que sendo “Pedro Abrunhosa”, permitem de forma igual a todos os semelhantes, numa “Seia” ou noutra cidade qualquer e não apenas nos grandes centros, momentos de expressão que vão além das duas palavras que se podem dizer no fim.
E eu neste caso nem às duas me remeto, remeto-me apenas a uma: “obrigado”.