Há dias, em conversa com colegas na sala de professores, discutíamos as diferenças entre as escolas públicas de zonas mais carenciadas como a nossa e os colégios privados onde alguns dos meus colegas também lecionam. Enquanto partilhávamos experiências, lembrei-me de uma história que me marcou quando me iniciei nas lides de professora.
Dava aulas nessa altura numa escola pública (então designada pomposamente por Liceu) na área da Avenida de Roma. Recordo perfeitamente como se fosse hoje, o dia em que fui alvo de chacota por uma simples razão: eu não tinha televisão. Numa altura confessei ingenuamente aos meus alunos que não tinha visto um determinado programa na noite anterior porque não tinha TV. A stora de Português não tem televisão, espalhou-se de imediato entre os alunos, tornando-me uma espécie de extraterrestre do ensino em Portugal. E era verdade. Não que fosse uma extraterrestre mas que, de facto, eu não tinha televisão. O porquê não interessa para aqui agora mas se vos disser que vivia num quarto alugado de uma cave escura talvez compreendam que eu tivesse outras prioridades. E eu tinha.
Hoje sei o que sentem alguns miúdos quando são confrontados com situações deste tipo. Porém, o que mais me preocupa é a forma como os alunos escrevem: pouco e mal. E existem diferenças abismais na competência de escrita entre alunos oriundos de famílias com diferentes contextos socioeconómicos, sabemo-lo bem. Continuo diariamente a tentar de tudo para que os meus alunos escrevam mais e melhor mas não há grande volta a dar.
Por mais que lhes explique a importância de uma expressão escrita correta e cuidada como ferramenta de apoio em todos os seus momentos de avaliação final (testes e exames), o valor da leitura nessa competência, a necessidade do treino da escrita, etc, as novas tecnologias e os interesses dos alunos são outros. Por outro lado, continuam a escrever exatamente como falam mesmo sabendo que não o devem fazer. Ficam satisfeitos com a nota dez quando a conseguem alcançar. Ponto final.
Foi assim que, numa das últimas aulas, exigi-lhes um texto autobiográfico elaborado em sala. Os resultados do teste escrito tinham sido fracos e havia um aluno que não tinha sequer elaborado a composição. Disse-lhe com assertividade, olhos nos olhos, sem deixar margem para dúvidas:
– Escreve-me um texto como deve ser, se faz favor!
– Oh, a stora pensa que lá por ser escritora, pode tar sempre a mandar vir ca gente por causa do falar e do escrever… – respondeu-me irritado.
Não desisti e exigi-lhe que escrevesse o texto, ali mesmo à minha frente, ao que o meu aluno obedeceu embora de olhar ríspido e mãos crispadas. Eis o que escreveu:
SOU DO BAIRRO
Eu sou um rapaz do bairro. Por ser dali, as pessoas pensam que eu sou um ladrão ou que sou mau. E ter origens africanas não me ajuda. As pessoas que não me conhecem mas que sabem de onde venho, às vezes olham para mim como se eu fosse um monstro de sete cabeças. Cresci a saber que podia ser criticado e apontado e, por isso, já estou preparado para ser julgado. E por viver num sítio onde as maiores têm medo de entrar, não é fácil levá-las a conhecer um pouco da minha vida porque pensam logo no mal… Parece que o bairro é um buraco negro.
A minha vida não é andar a roubar. Nem eu quero isso para mim. Só de pensar em ir preso e ficar afastado da minha família, prefiro estar na escola. Quero ter uma boa vida e constituir a minha família em vez de andar feito vadio. Sou mais do que se vê. Más influências não me faltam e eu não quero seguir esse caminho. Já errei. Já fiz coisas que não devia. Mas nunca prejudiquei ninguém. A única pessoa que prejudiquei foi a mim próprio.
Não sou perfeito mas há em mim muito para conhecer. Nem tudo é bom; como toda a gente, também tenho coisas más mas tenho um bom coração.
E eu sei que tens, querido!