Chamem-me terrorista, subversiva ou ambos — maio é o mês das mães, essa doce e cruel metamorfose que mistura, sem deslaçar, omnipresença, omnipotência, doçura, terror, responsabilidade, disciplina, bandalheira, justiça, talentos artísticos variados escondidos e uma dose cavalar de cansaço, e eu decido escrever sobre os tios.
Sou mãe de quatro mas também fiquei para tia (e recuso a conotação negativa desta frase): Isabel, Rafael, Gabriel, Alice, João Pedro e Eva são, para já, e por ordem cronológica de nascimento, a minha amada meia dúzia de sobrinhos. Já os bem-aventurados dos meus filhos engrossam a contabilidade com um total de 14 tios — André, Leonardo, Marina, Palmira, Nuno, Romão, Bernardo, Rita, Miguel, Paulo, Rosie, Joana, Marco, Emanuel.
As mães são as mais altas coisas que os filhos criam, diz, certeiro, o poema de Herberto Helder, mas os tios são também uma das mais incríveis invenções de todos os tempos — são a obra-prima dos sobrinhos.
Vivo a bênção dos sobrinhos como uma espécie de netos antecipados que a vida nos dá, quando as articulações ainda estão mais ou menos intactas, a pele ainda não engelhou circunscrevendo um mapa da viagem da vida feito de sulcos de rugas, e o cabelo assume todas as cores da paleta menos a branca e prata.
Sei que faltava aos pais poderem ser mais tios. E darem-se ao luxo de ser também um pouquinho mais de avós. A verdade é que não é essa a ordem natural das coisas, as águas estão bem separadas desde tempos imemoriais — aos tios o que é dos tios, ou seja: os sobrinhos!
Tenho os melhores tios do mundo e, por isso, a minha fasquia de tia é muito alta.
Diz-me a experiência que os tios fazem as maiores loucuras pelos sobrinhos e concedem-lhes privilégios que nenhum filho algum dia terá.
O meu tio Zé perdeu o juízo quando me ofereceu a minha primeira Barbie (certamente que com a reprovação dos ímpetos austeros da minha mãe, que era pela Tucha preta – made in Portugal – e pelas Mary Quants, com roupas floridas de hippie, calças à boca de sino e plataformas gigantescas nos pés, que eu, que nascera numa outra década, ansiando por chumaços nos ombros e muito lamé metálico, não entendia).
Quando a boneca das proporções impossíveis e cabelos loiros platinados chegou a Portugal, na companhia do seu companheiro sem genitália, a meio da década de 80, apresentou-se ao nosso país em duas versões: uma, seminua, de fato de banho tropical, sem braços articulados (era a Barbie para os “remediados”), e outra, vestida de princesa, com brincos nas orelhas, anéis e braços dobrados multiposicões (era a Barbie da “alta burguesia”).
Chamava-se “Barbie Cintilante”, era um holocausto de tule e veludo rosa e prateado, e nunca me esquecerei dela, e da felicidade com que o seu vestido que brilhava no escuro encandeou os meus olhinhos brilhantes de menina muito pirosa. Ninguém tinha uma Barbie Cintilante com braços dobrados e articulados na escola pública que eu frequentava, colada a vários bairros de barracas de Lisboa.
Quem é que gravou esta memória fluorescente na minha cabeça e deu o pontapé de saída para a minha carreira de hit girl? Só podia ter sido um tio…
Brinquei com o raio da boneca até ter quase 14 anos (e certo dia sei que a vou encontrar no sótão em que transformamos, a certa altura das nossas vidas adultas, as casas dos nossos pais, e entrar num transe de comoção), e ela acompanhou-nos, a mim e ao meu tio Zé, nas “caças ao tesouro” que empreendíamos por sucatas à procura de carcaças de NSUs, Austin A40, VW Carmen Guia, Carochas da II Guerra Mundial, e tantos outros clássicos que fizeram parte do meu léxico infantil — eu era, na verdade, um sobrinho maluco por carros que ele tanto queria ter (e lamento nunca ter tido grande entusiasmo para o modelismo).
Nunca lho confessei, mas morria de medo do Rally de Portugal, para onde ele me arrastava sonhando eventualmente que eu viesse a ser uma Michèle Mouton, mas não são só os tios que cometem loucuras pelos sobrinhos — pelos tios os sobrinhos também enfrentam todos os nossos demónios e superam os seus medos mais inconfessáveis. Foi por ele que segui com entusiasmo anos de Fórmula 1 a torcer pela equipa da Ferrari e a acalentar uma paixão platónica por Gerhard Berger, e que tentei ser — em vão — um Anatoly Karpov do xadrez.
Os tios também competem entre si, pelo troféu de “tio favorito”, e o meu tio Manuel também esteve convencido que eu tinha alma de homem, apesar da predileção por sapatos de verniz e por todos os pantones listados, do magenta ao violeta — quem me mandou ser a única mulher da minha geração na família?
Em vez de carros (e apesar de amar carros, de ser um excecional condutor, e de me ter posto a conduzir o calhambeque Wolseley do meu avô com uns 6 anos — a realidade é que o lugar do tio fixe dos carros antigos que oferecia Barbies radioativas já estava ocupado), o meu tio Manuel empenhou-se, durante toda a minha infância, a tentar fazer de mim um “Panda Kung Fu”.
Demonstrou-me em tenra idade que o meu genético excesso de peso em nada interferia com a possibilidade de eu poder vir a exceder todas as limitações que o meu corpo descoordenado e gorducho aparentava ter.
Fechados na sua oficina, com tornos, serras, pregos e martelos, construímos uns Nunchakus, que ele me ensinou a manejar (falo agora das matracas também, já que é improvável que a minha mãe tenha um treco passados tantos anos?), e passei férias grandes de verão inteiras entregues à sua guarda, a trepar a árvores, a fazer pontaria a latas com a pressão de ar do meu avô no quintal. Foi ele, o meu tio Manuel, na Fonte da Telha, que me ensinou a nadar (o Zé não quis ficar atrás e ensinou-me a andar de bicicleta e a fazer cavalinhos na BMX verde e branca que me ofereceu — mais uma extravagância de tio).
E depois há as tias. A Milucha apresentava-me como sobrinha por afinidade e eu, lá do alto dos meus dez anitos, achava certeira a descrição — tínhamos realmente afinidades e cumplicidades extraordinárias.
Durante a minha adolescência ouviu-me as confidências e as angústias, comprou-me roupa de “marca” (barbaridades às quais a minha mãe era também inflexível), deu cobertura às primeiras saídas a discotecas e namoricos, emprestava o seu Citroën AX aos bandalhos dos meus amigos para irmos para a praia e, ó Deus, e deu-me o meu primeiro eyeliner. Como lhe estou grata por tudo!
Crescemos rápido demais e a certa altura desligamo-nos dos tios, tal e qual como nos desligamos dos nossos pais com ganas incontroláveis de irmos à nossa vida à nossa conta e risco.
Sei, hoje em dia, quase com 40 anos, que esse afastamento é passageiro. Que, tal como regressamos ao colo dos pais (geralmente quando nos tornamos pais), também voltamos a ser os maiores compinchas dos nossos tios (quando eles nos veem espelhados nas feições e gargalhadas inocentes dos nossos filhos).
Tenho quase 40 anos, ganhei mais de uma dezena de tios maravilhosos pelo feliz advento do meu casamento, e ainda na sexta-feira passada o meu tio Manuel tinha o seu novo Mazda MX5 à minha espera para eu ir dar uma voltinha ao quarteirão — continua a competir com o Zé na cena dos carros. E eu cheia de vontade de lhes dizer a ambos obrigada por me terem feito tão, tão feliz.
Hoje, sou tia de seis sobrinhos incríveis, e revejo nos meus atos todo o amor que os meus queridos tios me deram, sem esperar nada mais do que um sorriso de retorno, quando me desdobro nas acrobacias e piruetas mais inacreditáveis por aquelas criaturinhas fofas que não tenho que educar — só mimar e proteger!
Acedo a todos os caprichos da Isabel — a Isabel foi a menina que fez de mim tia. Numa única tarde conseguimos fazer pipocas, bolos, plasticinas, danças, penteados, pinturas, maquilhagens e o que mais ela me pedir (sei que os meus filhos torcem o nariz e franzem o sobrolho com estes privilégios). Ou quando levo o Gabriel de férias comigo todos os verões para a quinta de São Pedro do Sul. Ou quando o Rafael me dá secas de horas ao telefone, com toda a doçura, como foi o seu dia na escola, e eu sem vontade que ele desligue a chamada. Quando faço casaquinhos de croché e gorrinhos para os bebés João Pedro e Eva, sonhando com o dia em que os vou ouvir pela primeira vez, muito dengosos, a reclamar a minha atenção, com um “tia Dianaaaaaa”.
Enche-me o coração assistir aos tios que os meus irmãos, cunhados e cunhadas são para os meus filhos: derreto-me ao ver o André a conseguir a proeza notável de pôr os meus filhos de 13, 8, 4 e 2 anos a verem animações checas dos anos 80 durante uma tarde inteira, num transe que só um tio consegue induzir. Ou quando o Romão anda quilómetros pela cidade a apanhar Pokémons com o seu Android com os meus filhos atrelados. Sinto uma ternura profunda quando deixo os mais velhos, o António e a Carolina, irem sofrer pelo Sporting com os tios Leonardo e Bernardo para Alvalade e comove-me como as minhas pequeninas se derretem todas quando falam da sua tia Joana — e só uma tia acederia ficar todas as férias da Páscoa com quatro sobrinhos em casa, para os pais poderem ir celebrar o seu décimo aniversário de casamento para o outro lado do mundo.
Neste maio, mês das Mães por excelência, falo dos tios porque dou por mim em pânico, a prever que os tios, com as famílias encurtadas a um filho ou no máximo dois, estão em vias de extinção!