A maior parte das pessoas poderá desconhecer que o movimento da “qualidade em saúde” nasceu no reino Unido nos anos 80, quando as autoridades descobriram que duas doentes com cancro da mama eram tratadas com medicamentos diferentes conforme viviam na parte norte ou na parte sul de Londres (numa linha recta de 60 km).
Este fenómeno – designado mais tarde por “tratamento por código postal” – designa-se tecnicamente por variação da prática clínica. Esta define-se de maneira simples: doentes semelhantes (na doença que têm e no risco que correm) diagnosticados utilizando testes diferentes e tratados com esquemas terapêuticos diversos. Este fenómeno é universal, mas tem sido mais bem estudado nos Estados Unidos. Na Europa, o Reino Unido e a Holanda lideram a investigação sobre este aspecto dos cuidados de saúde.
É fácil de compreender que a variação da prática constitui um problema major no que à qualidade em saúde concerne, já que é difícil aceitar que dois processos de cuidados tão diferentes possam ambos ser adequados ao doente específico. Embora haja sempre diferença entre doentes, estas dificilmente explicam as diversas abordagens para o mesmo problema clínico. Entre nós, o Infarmed tem publicado estudos em que se detectam diferenças da utilização de medicamentos anti-hipertensivos no norte, centro e sul do País. Ora, dado que o risco cardiovascular é semelhante nos habitantes das três regiões, o que pode explicar estas diferenças?
Embora existam outras causas, a principal razão encontra-se no padrão da prática clínica dos médicos.
Diversos estudos confirmam esta realidade, especialmente vindos do maior centro mundial que estuda estes fenómenos – o Dartmouth Institute for Health Policy and Clinical Practice dos EUA – e que publica o conhecido Dartmouth Atlas of Health Care (www.dartmouthatlas.org/). As considerações que se seguem têm como base uma certa realidade americana[1] mas, em diversos graus, verificam-se também no nosso SNS.
Até há pouco tempo, os responsáveis políticos e de gestão/administração concentravam-se – numa perspectiva de melhoria da qualidade – nos cuidados classificados pelo grupo de Dartmouth com “cuidados efectivos”. Este são serviços que, baseados na melhor evidência científica, funcionam melhor que as alternativas e em que os benefícios do tratamento ultrapassam largamente os riscos em termos de efeitos secundários ou complicações inesperadas. Por outras palavras, todos os doentes elegíveis devem ter este tipo de cuidados. O problema aqui é a sua subutilização, isto é, doentes que deviam, mas não têm acesso, a este tipo de cuidados: um exemplo típico é a taxa de vacinação preventiva, que em certas comunidades é inferior a 100%. Num SNS ideal todos os cuidados seriam cuidados efectivos e todos os doentes deles beneficiariam.
Uma segunda categoria de cuidados que o grupo de Dartmouth identificou designa-se como “cuidados electivos” (ou sensíveis às preferências individuais), que são cuidados em que existem mais do que uma opção clínica, mas com resultados diversos segundo a opção tomada. Um exemplo é o tratamento do cancro da mama localizado, que tem várias opções, desde a cirurgia à quimioterapia, à hormonoterapia ou à radioterapia (ou combinações destas opções). Estas abordagens fornecem resultados relativamente semelhantes em termos de mortalidade e complicações, mas induzem níveis de qualidade de vida muito diferentes. Deste modo, pensa-se que a seleção dos esquemas disponíveis deveria idealmente ser feita pelos doentes, após terem sido detalhadamente informados das consequências de cada opção. Ora o que acontece é que, dado que os doentes delegam a maior parte das vezes essas decisões nos médicos, é a opinião destes que acaba por prevalecer na decisão final. Um exemplo típico é o doente com um problema como a doença coronária, em que se aquele for a um cardiologista será mais provavelmente tratado com remédios, mas se for visto por um cirurgião cardíaco será mais provavelmente operado às coronárias. Para resolução dos problemas criados por estes cuidados electivos serão necessários esforços concertados para diminuir a incerteza científica acerca dos resultados finais de cada opção disponível, através de investigação científica de alta qualidade sobre as áreas em que não há informação disponível. Mas também será necessária uma alteração na relação médico-doente, deixando a este último espaço para que possa emitir as suas opiniões e valores no que à sua doença concerne – a chamada decisão partilhada.
A terceira categoria de cuidados que Dartmouth caracteriza é a dos “cuidados sensíveis à oferta”. Esta categoria clínica tem a ver acima de tudo com a frequência com que são oferecidos aos doentes os cuidados disponíveis, em que quanto maior a oferta, maior o consumo. Talvez os que menos se observem entre nós, não deixam de ser uma realidade bem visível: altas ofertas de consultas médicas, frequentes pedidos de meios auxiliares de diagnósticos (tomografias computorizadas, ressonâncias magnéticas, etc.), requisição regular de check-ups, aumento de internamentos em hospitais e unidades de cuidados intensivos (UCIs) e até maior consumo de cuidados continuados. A selecção dos cuidados sensíveis à oferta existe quando precisamente há muita oferta de serviços – especialistas, consultas médicas, tecnologias de imagem, camas em unidades de cuidados intensivos, etc. – e, portanto, elevado consumo dos mesmos. As decisões médicas neste caso são poderosamente influenciadas pela disponibilidade das tecnologias e das unidades de saúde, em que a ideia (errada) que quanto maior é a intensidade de cuidados, melhores estes serão. A ausência de consenso de quais serão as melhores práticas clínicas para todas as possíveis situações clínicas ajuda a este tipo de consumerismo médico, raramente baseado na evidência e muito prevalente em certos sub-sistemas de saúde. Este tipo de cuidados é claramente muito mais dispendioso e, curiosamente, os doentes – apesar de eles próprios esperarem maior intensidade de cuidados – acabam por classificar as suas experiências quando estão doentes como piores, passando mais dias internados, a serem vistos por muito mais médicos (em certas áreas dos EUA, no último ano de vida os doentes são vistos por uma média de 10 médicos e fazem literalmente dezenas de consultas durante esse período de tempo…), com sistemas mais desorganizados e maiores taxas de resultados negativos. Uma solução possível para remediar este problema é definir melhores práticas num contexto de ciência da implementação de cuidados, utilizando evidência científica de estudos de boa qualidade sobre os sistemas de saúde. Isto é particularmente importante em doentes com doenças crónicas complexas, em que a redução cuidadosa e bem fundamentada da sobreutilização dos cuidados apresenta um balanço benefício-risco positivo. Um exemplo típico é a necessidade de se tratar mais conservadoramente a hipertensão arterial, o colesterol elevado e até a diabetes em doentes idosos (com mais de 75 anos, por ex.), já que existem vários estudos demonstrando uma maior mortalidade nestes doentes quando os seus factores de risco cardiovascular são tratados tão intensamente como os de doentes muito mais novos e que beneficiam muito com uma redução cuidados adas suas medicações (Arch Intern Med. 2010;170:1648-1654).
Numa altura em que tanto se fala na literacia em saúde dos doentes/pacientes, parece-nos essencial que as pessoas reconheçam a complexidade do nosso SNS e, bem informadas, possam ajudar a racionalizar os cuidados para que todos possamos beneficiar.
[1] Wennberg JE. Tracking medicine. Oxford University Press, 2010