Nasci num berço de ouro, que me foi entregue de mão beijada e esculpido a pulso por quem não o teve: os meus avós, e antes deles os seus avós, e assim sucessivamente, rebobinando até ao início dos tempos. Esquecemo-nos, como se fosse coisa pouca, que estamos no topo da cadeia evolutiva, todos nós, do humilde cantoneiro ao homem mais poderoso do mundo, que por aqui nos encontramos, neste preciso momento, porque descendemos todos de vencedores, gente de fibra e inquieta, que resistiu a tudo, e que, assim, geração após geração, fez o mundo avançar, torná-lo o esplendor que ele hoje é (ainda que com tantos e tão graves problemas por resolver).
É isso que as Famílias, o berço da Humanidade (no início não era o Verbo — eram as Famílias), fazem desde sempre: tudo, mas mesmo tudo o que está ao seu alcance para que as gerações seguintes tenham uma vida melhor que a sua. Compreendo, portanto, de onde venho, a força que tenho, e o que ando aqui a fazer; é bastante simples, para mim, o sentido da vida: garantir que a história continua, e em versão melhorada. Devo isso a quem me entregou o mundo e me trouxe até aqui, e tenho essa missão para os netos dos meus netos que nunca vou conhecer e que, provavelmente, nunca virão a saber quem fui, mas que só aqui estarão também porque eu assim decidi. Já tenho essa lucidez e ponho tudo quanto sou nessa interminável empreitada.
Tudo isto me levou à conclusão que tenho que descomplicar — é uma questão de sobrevivência.
Descendo de uma família de gente fabulosa, brilhante e resiliente, mas absurdamente complicada: pessimistas natos, que vêem os copos vazios e rachados, que empolam os problemas e são míopes às suas infindáveis e criativas soluções e possibilidades que abrem, pessoas que entram em combustão espontânea ao mínimo desaire do livro da vida — e se ela está sempre a trocar-nos as voltas, e o chão por debaixo dos pés a falhar-nos —, gente que faz planos — ó Deus, gente que faz listas para tudo!!! — e que paralisa perante a inevitável certeza de que o que tiver que ser será.
Tive uma infância afortunada: além de uma família que me amava e que me tratava como se eu fosse o centro do mundo, havia uma casa de família como nas revistas, com uma piscina e um autêntico jardim botânico, meticulosamente planeado e plantado com esmero e perseverança (não há nada mais difícil do que plantar um jardim e controlar a força da natureza) pelos meus avós para os seus bisnetos, os meus filhos. Dentro dessa casa as coisas eram todas bonitas — descendo de pessoas que perseguem o belo desde tempos imemoriais — e estavam todas no sítio certo, onde tinham que estar (e de onde nunca mais podiam sair).
Porém, durante a minha infância e até chegada à idade adulta, se eu quisesse ir a essa casa tinha de avisar pelo menos com uma semana de antecedência, e praticamente preencher um formulário em duplicado, a anunciar a que horas chegava, a composição da comitiva, a hora prevista de partida, o que queria comer. Não havia espaço para o improviso.
Era lembrada à chegada que não devia correr à volta da piscina, ter cuidado com o lago, que não devia subir as escadas para o piso superior agarrando-me às paredes — para isso é que tinham inventado os corrimãos —, e sempre que ia à casa de banho tremia com a possibilidade de deixar o sabonete Lux (o das nove em cada dez estrelas) fora da saboneteira.
Depois, na realidade, ninguém foi verdadeiramente feliz nessa casa de infância. Ela perdura, abandonada e assombrada, apenas na minha memória. Os meus filhos não conhecem o jardim que os meus avós lhes tinham plantado. Sobretudo porque a minha família liga, a torto e a direito, o complicómetro.
Não contem comigo para o clã famílias complicadas. Estou a virar o barco com todas as minhas forças para o (bom)porto das famílias descomplicadas.
(No percurso vou sofrendo um poucochinho com os pacotes de leite que não regressam ao frigorifico, com o trilho de sapatos e peúgas largados por toda a casa, com as pastas de dentes que são espremidas sem método, com o sofá arranhado pelos gatos.)
Sou das mães que mostraram a mama a meia Lisboa, porque não ia deixar de sair e fazer o que tinha para fazer (que é tanto), ficar enclausurada em casa, ou enfiar uma fralda de pano por cima da cabeça do bebé só porque tinha de o alimentar ao peito. Mudo fraldas no porta-bagagens, no chão, onde calhar (e não lavo o carro há tanto tempo que podia até ter tido tempo de ter outro filho entretanto). As bebés, ao fim-de-semana, dormem a sesta no carrinho, ou no jardim, ou onde for (nota: às vezes não andam com roupas a fazer pendant): a vida anda lá fora e é tão boa e é tão bom sujarmo-nos — porquê complicar?
Só vou ao centro de saúde ao quarto dia de febre. E 37,4 não é febre. Quando os miúdos caem no parque levantam-se sozinhos. Raramente choram. Não sei a que idade introduzi o abacate, ou o mirtilo na alimentação das pequenitas. Estou a criar uma geração de desenrascados. Sem complicações.
Na escola, explico à minha filha mais velha que ter sete quatros e três três é ser uma óptima aluna (no sétimo ano acha que é medíocre com estas notas) e não entro em combates de luta greco-romana para ficar na primeira fila da apresentação do espectáculo do final do ano do meu rapaz, nem lanço ou acalento motins inflamados porque as professoras da creche não prepararam uma festa de finalistas faraónica (as famílias ficam cada vez mais complicadas quanto maior é a escassez e raridade de crianças, com esta política de filho único).
Domo todas as burocracias e serviços públicos com um sorriso nos lábios. Dou os bons dias no lobby do elevador a estranhos. Não discuto por dinheiro — e como gostava de não me preocupar com isso. Não contem comigo para esquemas baixos e golpes duvidosos — estou a construir um futuro melhor para os meus, e não vou ser desviada deste propósito.
Faço férias em modo de caravana — um carro velho com pessoas e animais, um carro ainda mais velho com a bagagem —, e até me atrevi, a semana passada, a apanhar um avião “low cost” para os Açores — o melhor destino de família possível, até porque está lá a família que ganhei por casamento, muito numerosa e muito descomplicada, uma inspiração para esta minha odisseia —, com carrinhos, cadeiras de automóvel e malinhas de tamanho ridículo para quem viaja com quatro crianças. Faço caminhadas por trilhos na natureza, com as crianças, não aconselhados a cardíacos. Levamo-los às cavalitas, ao colo, a pé, pela mão. Não há barreiras ou limites: descomplicar é a palavra de ordem!
Durante as férias (os meus tios Jaime e Isabel, que inspiração, acolheram-nos aos seis em sua casa, sem se importar com a confusão, juntando camas, desencantando lençóis e toalhas e toda a parafernália possível), os miúdos apaixonaram-se por um cão: grande de mais, peludo de mais, que vai fazer xixi por todo o lado e certamente roer uns quantos móveis da cadeia escandinava que padronizou os nossos lares.
Assinaram um “cão-trato” à chegada a Lisboa. Está afixado na porta da entrada de casa: a Carolina tem de estudar meia hora de piano por dia e ler outra meia hora qualquer coisa que não seja “Bananas” e “Totós”; o António tem tabuadas para cantar todos os dias; a Aurora vai deixar de usar fralda; e a Isaura vai deixar de se alimentar de boiões da Nestlé.
O cão chega hoje ao Aeroporto de Lisboa. Dois pais (cansados), quatro filhos (felizes), três gatos (senhores de si), um cão (muito velhinho) e uma cadelinha bebé açoriana adoptada. Somos uma família numerosa. Feliz. E descomplicada.