Uma enorme polémica rebentou no início desta segunda semana de 2016 no Reino Unido. Os seus ecos não me chegaram pela imprensa portuguesa, mas sim através dos insondáveis mistérios do algoritmo do Facebook, que trouxe ao meu feed, logo bem cedo pela manhã de segunda-feira, um post do The Guardian (sinais dos tempos – a rede social é cada vez mais um agregador e plataforma de leitura de jornais) sobre uma discussão que me apaixona desde sempre – esta coisa de ser mãe, esta coisa de ser pai, de construir uma Família, num mundo cada vez mais complexo.
Num dos seus primeiros discursos do ano, o primeiro-ministro conservador David Cameron elegeu o tema da Família (assim mesmo, com letra grande, porque é tão importante como quando usamos a maiúscula em Homem, para falar da Humanidade, que simplesmente é indissociável desta coisa transcendental que é Família) como prioridade política para os próximos cinco anos, e ousou propor aos súbditos da rainha de Inglaterra aulas de parentalidade financiadas pelo Estado. Defendendo que a Família é o melhor antídoto para a pobreza, o primeiro-ministro britânico anunciou ainda um reforço da oferta pública de terapia e aconselhamento conjugal.
Com este discurso, e com as medidas que estão neste momento em cima da mesa, Cameron incendiou a opinião pública britânica. Sucedem-se acaloradas opiniões e argumentos dos dois lados da barricada, as polls online revelam um esmagador repúdio dos britânicos, e os tablóides lançam álcool para a fogueira, refrescando a memória coletiva do infeliz episódio em que o primeiro-ministro britânico deixou a filha por uns instantes num pub, como quem diz: ‘Quem é este que nos quer ensinar a ser melhores pais?’
A ideia não é nova, porém. Há quatro anos, após os motins violentos em Londres que abriram os noticiários internacionais, Cameron tentou implementar aulas de parentalidade financiadas pelo Estado, para controlar a escalada de violência que assolou Londres em 2012. Dotou o programa piloto com sete milhões de libras e a expetativa inicial, de impactar vinte mil famílias carenciadas, reduziu-se a apenas três mil corajosos que embarcaram na aventura de melhorar as suas competências em parentalidade.
Porque volta então Cameron à carga?
Será assim tão descabida a ideia? E porque é logo descartada pela esmagadora maioria dos britânicos?
Sabem tudo sobre este duro ofício que é ser pai e mãe? Não aceitam lições de moral?
Identificam pelo tipo de choro de um recém-nascido aquilo que ele precisa apenas com uma intuição inata? Dominam a problemática da amamentação e das malvadas cólicas porque a fada madrinha acenou com a varinha mágica enquanto desmaiavam de cansaço pela privação de sono? E essa característica quase sobrenatural, das certezas absolutas sobre a parentalidade, desceu neles no momento do parto, ou foi logo às primeiras semanas da gravidez?
Podem por favor exportar a solução para o resto do mundo de como se põem as pestes a dormir a horas decentes? Esclarecem-me como deixo de negociar a torto e a direito com pequeninas criaturas adoráveis com tiques de ditadores?
E já agora, se não for pedir muito: como comunico com uma pré-adolescente, que se fecha num quarto e que parece ter distúrbio de personalidade múltipla? Sem querer ser muito chata, sabem o que é um canal de Youtube? E o Snapchat? Sabem o que andam os nossos filhos a fazer por essas bandas?
Tenho quatro filhos e isso faz de mim, para todos os efeitos, uma mãe experiente, que já tem umas luzes sobre como se cria um filho feliz, íntegro, responsável, capaz. Até me faz ter sido escolhida para escrever esta coluna.
Mas tenho a humildade de confessar que não são poucas as vezes em que não faço a menor ideia se o que estou a fazer é o mais correto, ou se as minhas ações e estilo de parentalidade suave e democrático, e que a minha mãe considera quase como que libertino, não vai transportar todos os meus filhos ao divã do psicanalista que, sem margem para qualquer dúvida, me apontará a mim a culpa de todos os seus problemas, depois de infindáveis sessões de doloroso espiolhar dos cantos mais recônditos da alma.
Andamos nisto em modo de tentativa e erro e alguma orientação era bem-vinda. Porque a intuição e o instinto são a base de tudo, mas grande parte das vezes não nos dão todas as certezas. Porque há mesmo muito em jogo. E não devia ser uma aposta às cegas.
Se é mais ou menos consensual que o curso de preparação para o parto é útil (confissão: nunca fiz), porque é que assim que a criança está cá fora os pais são de imediato empossados com toda essa sabedoria como que por linhagem divina?
A verdade é que conheço todo o tipo de pais, e sei que a parentalidade é, cada vez mais, uma espécie de religião, que envolve apaixonadamente a mãe e cada vez mais o pai, que surge empenhado e com vontade de partilhar tudo. Assisto diariamente ao fenómeno crescente do culto da parentalidade, com a criança no centro de toda a família. É que a família também mudou: os filhos atrasaram-se, porque a vida está difícil, e quando vêm, no número máximo de dois, são autênticos príncipes, rodeados de amor, roupas bonitas, e todo o tipo de bonecada e parafernália diversa. Muitos de nós também já não crescemos rodeados de irmãos mais velhos e mais novos, tias, primos e vizinhos, pelo que também não absorvemos inconscientemente os diferentes dilemas e desafios das diferentes etapas do crescimento de uma criança e como a Família lida com eles.
Surgiram, em alternativa, os grupos de pais e de mães no Facebook, os blogs de mães idílicos, que estão lá para a partilha, para as dúvidas, para o apoio (e alguma dose de neurose e histeria coletiva), 24 sobre 24 horas, onde quer que estejamos.
O mercado ao serviço da parentalidade cresce à velocidade da luz: livros, worskhops, um desfile de terapeutas e especialistas, a ensinar-nos massagens para o bebé, a relaxar o bebé, treino do sono para o bebé, a alimentar o bebé, a ter o bebé mais feliz do mundo. O bebé é, na verdade, alvo de muita informação e formação. Talvez porque não falam, porque são ainda uma espécie de extraterrestres para os pais. Mas tenho para mim que o bebé é a coisa mais fácil que nos acontece enquanto pais. Dêem-me quadrigémeos recém-nascidos: tenho uma pré-adolescente em minha casa!
Sei também dos desafios que os filhos trazem a um casamento. Oiço queixas, vejo casais infelizes, a discutirem diariamente por minudências, incapazes de gerir expetativas e a braços com a adaptação a uma nova realidade que um filho traz. Vivo num país em que o desemprego jovem ceifa esperanças, empobrece famílias, deixa crianças com fome.
Posso ver muita coisa, saber muita coisa, improvisar muita coisa. Mas não sei tudo o que há para saber. Ao quarto filho aceito a minha humanidade. Ser pai não faz de mim um Deus (apesar de contribuir em larga escala para a minha imortalidade se o fizer bem – e a minha fasquia está bem alta, eu assim defini).
Tenho quatro, mas nenhum dos meus filhos veio com manual de instruções. Partilham o mesmo material genético, mas nenhum é réplica do anterior: vieram com cores de cabelo, cores de olhos e personalidades completamente distintas. Cada um deles desafia-me à sua maneira, obriga-me a superar-me diariamente e nas mais variadas ocasiões, apresentando-me quebra-cabeças que transcendem a racionalidade e que implicam um pouco de magia e grandes saltos de fé.
Devo ou não devo estar melhor preparada? Aceitar toda a ajuda, venha ela de onde vier? Não tirei um curso para me dar entrada para o mercado de trabalho? Não aprendi a conduzir? Li ou não li o manual de instruções do último brinquedo diabólico que lhes ofereci pelo Natal?
Não é um exercício fácil, implica muita humildade e um notável espírito de abertura: ninguém quer ser visto como um mau pai, ninguém se quer apresentar como um pai fragilizado, com dúvidas que abalam certezas; ninguém, à partida, revê legitimidade a quem quer que seja que lhes diga como educar um filho, muito menos o Estado, numa atitude a roçar o condescendente e o paternalista.
Mas o que é que realmente é mais importante?
É ou não é o trabalho mais importante da minha vida?
São ou não são eles o futuro de um país?
Não vejo então porque não deve o país investir nos pais.