Dulcinha, nunca te cases com um homem que não dê beijos na boca, dizia-me a Cacilda. Quando a conheci, ela tinha mais de 50 anos, mas era uma mulher atraente. E assim se manteve quase até morrer, já ultrapassados os noventa. A vida remediada que levava com o Sr. Ferreira não a impedia de andar sempre bem-arranjada, as saias justas com o casaquinho a condizer, o cabelo pintado de preto numa mise impecavelmente armada, as unhas pintadas de rosa-pérola ou platinadas. A Cacilda era – para abreviar – uma cinquentona enxuta.
(Cinquentona. De repente, dou conta deste entendimento sufixiante do português: trintona, quarentona, cinquentona. Nunca ouvi ninguém dizer vintona, o que certamente se deve ao pressuposto de que todas as mulheres entre os 20 e os 30 anos são sedutoras. Todavia, não será essa a razão por que não se diz sessentona. Como não ficar aflita se já vou a meio dos cinquenta?)
Não conte isso à miúda, ela ainda não tem idade, gritava a minha mãe da cozinha, quando a Cacilda entrava nos pormenores que a haviam levado a pedir a anulação do primeiro casamento. A Dulcinha tem de saber, D. Luísa, para não cair no mesmo erro do que eu. Ignorando o pedido da minha mãe, a Cacilda regressava aos detalhes de natureza sexual que eram, na sua opinião, tão ou mais importantes do que os amorosos.
Com uma diferença de idades de mais de 40 anos, era improvável a amizade que me unia à Cacilda, a vizinha de patamar, a porta dela em frente da nossa. As andorinhas voltavam de outros céus, o cheiro a sal entranhava-se nas manhãs ainda frias e brancas, a gelataria Santini reabria as portas a saudar mais um verão, as meninas do bairro do Rosário davam gritinhos à frente da montra da Migacho por causa da nova coleção de biquínis, os turistas da Rua Direita passeavam os escaldões calçando meias e sandálias, o prédio enchia-se com o cheiro a fritos das chamuças que a D. Suzete vendia na praia da Conceição, as aulas acabavam e eu passava grande parte das tardes de férias com a Cacilda na minúscula varanda do J. Pimenta.
O T1 onde a Cacilda vivia com o Sr. Ferreira, o segundo marido, com quem se casara ainda antes dos trinta, era semelhante ao nosso, só que virado para norte, para o frio romântico da serra de Sintra. Ai o sol, Dulcinha, suspirava a Cacilda, sentando-se deliciada num dos banquinhos da nossa varanda virada para sul e para a entrada do bairro. Não fosse a falta que a Cacilda sentia do sol e a curiosidade canina pela vida dos vizinhos, talvez a nossa amizade nunca tivesse acontecido. Mas são tantas as belas e sólidas construções assentes em fundações menos nobres que não se deve fazer a arqueologia dos sentimentos. A Cacilda gostava do sol e de vigiar quem entrava no nosso prédio e no do lado ou mesmo, mais longe, no café do Bento onde os homens se reuniam ao fim do dia para beberem uma cerveja e comerem petiscos como faziam em Moçambique ou em Angola, e eu gostava das histórias que ela contava e recontava.
Na sua lógica infantil, a Cacilda sempre se recusou a aceitar o rótulo de retornada, Não retornei coisa nenhuma, o meu pai já tinha nascido lá. Na boca dela, as vogais abriam-se e prolongavam-se, acrescentando alegria à sua vida e às vidas que ia tocando, ainda a estou a ouvir, já eu adulta, O Ferreira tem a mania de comprar aquelas revistas, só que eu já não consigo, Dulcinha, nas revistas é perna práqui, perna práli, já não tenho idade, e depois o Ferreira demora muuuuuito, eu adormeço, acordo, adormeço, acordo e o Ferreira continua naquilo.
O Sr. Ferreira apaixonara-se pela Cacilda por causa dos joelhos dela. Um dia, entrou num café de Lourenço Marques e o seu olhar foi sequestrado por uns torneados e alvos joelhos. A Cacilda sorria embevecida quando se lembrava da expressão atarantada com que aquele desconhecido ficara a olhar para ela. A senhorita aceita um drink, conseguiu ele dizer, por fim, à mulher a quem os joelhos pertenciam e de quem nunca mais se libertou. Passou a cuidar e a proteger a Cacilda como se ela fosse uma criança, e talvez seja essa a forma certa de amar o que é frágil.
Na nossa minúscula varanda virada para sul, os joelhos da Cacilda ficavam destapados quando ela se sentava no banquinho e a saia subia. Eu vigiava-os enquanto ela falava, e aquelas tardes de verão com a minha – como lhe hei de chamar? genuína? inadaptada? amalucada? – amiga faziam-me pensar que o sexo era mais do que a agitação exibicionista ou queixosa que perpassava das conversas da minha irmã e das suas amigas e que não precisava de existir secretamente ou mesmo inexistir, como acontecia com a minha mãe e as outras vizinhas. As conversas com a Cacilda eram a prova de que o sexo podia estar em harmonia com o resto da vida, podia ser uma coisa simples.
Quando a tarde chegava ao fim, já a Cacilda em casa dela, eu apurava o ouvido para dar conta do regresso do Sr. Ferreira do trabalho. Sentindo-o chegar no elevador, punha-me a espreitar pelo ralo da nossa porta para assistir ao prolongado beijo na boca com que a Cacilda o recebia, um beijo que às sextas-feiras se fazia acompanhar de uma camisa de dormir vermelha de seda, robe a condizer, chinelos de salto alto e lábios pintados de rosa-carmim.
Dulcinha, nunca te cases com um homem que não dê beijos na boca. A Cacilda foi a Blanche DuBois que eu conheci. Uma Blanche DuBois sem final trágico. Nem o facto de a descolonização a ter transplantado do sol de Lourenço Marques para o lado sombrio dos prédios do J. Pimenta, em Cascais, a teria impedido de viver feliz para sempre, se o Sr. Ferreira não tivesse morrido vários anos antes dela. Só quando foi internado no hospital onde viria a morrer dali a dias é que o médico revelou à Cacilda que o marido sabia há bastante tempo do cancro fatal e que escondera a verdade para a poupar ao sofrimento. Talvez o Sr. Ferreira tivesse razão, devem ser curtas as despedidas de quem se ama.
Cacilda, não precisamos de ter medo de depender da bondade de desconhecidos, pois não? De qualquer maneira, não temos alternativa.
(Crónica publicada na VISÃO 1378 de 1 de agosto)