Na última campanha eleitoral, os partidos da direita colocaram a liberdade de escolha como ideia central das suas propostas para a Saúde. Alguns, como o CDS,a Aliança e a Iniciativa Liberal propuseram, até, o alargamento da ADSE a todos os portugueses. Com isso revelaram alguma precipitação e pouco conhecimento sobre este mercado. É o que vamos tentar explicar, agora sem a pressão da luta política e cingindo-nos apenas às questões técnicas que o tema suscita.
O mercado da saúde tem características que o distinguem da grande maioria dos outros mercados. A relativa ignorância do consumidor, a relação de agência (liderada pelos médicos) e a existência tendencial de um terceiro pagador, fazem da Saúde uma área muito própria, quer nas relações económicas, quer sobretudo na efetiva decisão de escolha por parte dos doentes. E, ao contrário do que pode acontecer noutros mercados, a competição entre prestadores, pode baixar o preço dos serviços, mas faz invariavelmente subir os custos do sistema para a sociedade, para o Estado e para os doentes.
Expliquemo-nos melhor. Quando estamos doentes e procuramos um médico, fazemo-lo habitualmente de duas formas: nos sistemas públicos dirigimo-nos ao nosso médico de família ou aos serviços de primeiro contacto habitualmente disponíveis que, posteriormente, e se considerarem necessário, nos orientam para outros especialistas. Em modelos de mercado, o doente escolhe o primeiro contacto (um consultório, uma clínica ou um hospital) de acordo com experiências anteriores, aconselhamento de terceiros ou conhecimento direto do mercado. A partir desse momento, o subsequente consumo de cuidados ficará dependente da orientação médica inicial. Em qualquer dos cenários não é o doente que decide o que vai consumir, a complexidade dos diagnósticos e dos tratamentos e a sua duração e, portanto, os respetivos custos. Há uma diferença entre sentir-se doente e saber o que se precisa. A ignorância do consumidor resulta exatamente deste desconhecimento, deixando-o duplamente vulnerável: pela sua doença e o sofrimento e ansiedade que ela provoca; pela submissão às decisões médicas que vai ter que seguir (daí a figura da “2ª opinião”, utilizada raramente e apenas por quem tem informação e conhecimentos).
Percebemos já que os percursos dos doentes dentro dos serviços de saúde vão depender da orientação clínica (daí o conceito de relação de agência), quer no diagnóstico, quer nos tratamentos, quer na fase posterior de reabilitação. E, se nos serviços públicos, apenas as necessidades do doente condicionam a decisão médica, nos serviços privados com fins lucrativos, associam-se outros objetivos de natureza económica: rentabilizar estruturas e equipamentos, promover a angariação de mais doentes e, tendencialmente, propor-lhes mais exames, intervenções ou reabilitação. Estas posições de princípio podem ter efeitos perversos: nos serviços públicos, laxismo, ineficiência e desinteresse pelas situações mais simples ou sem importância clínica; nos serviços privados, excesso de prescrições, redundâncias diagnósticas inúteis, sobrediagnóstico, numa palavra, sobreconsumo. Esta relação de agência funcionará na perfeição se o doente tiver por trás um terceiro pagador (o Estado, uma seguradora ou uma entidade mutualista),distante da relação médico-doente. O prestador tem incentivos para prescrever, o doente sente-se confortado pela dedicação e pelo investimento clinico que lhe é proporcionado e não tem grandes preocupações com os custos. Se o financiador não tiver critérios para apreciar a pertinência e a adequação dos atos realizados, arrisca-se, se não colocar limites, a ter que suportar um excesso de prestações que não controla e não consegue impedir. É o caso, diga-se, da ADSE.
Por estas razões, países com modelos de saúde de prestação pública apresentam, em geral, custos globais mais baixos para melhores resultados: dão prioridade aos doentes mais complexos e carenciados e limitam as prestações ao que o doente efetivamente necessita. Todavia, apresentam falhas de resposta pontuais, formando listas de espera, por vezes inaceitáveis e disponibilizando uma oferta de serviços relativamente rígida e burocrática.
Nos países de modelos de mercado, o marketing clínico desempenha especial papel na atração de novos doentes, promove consultas, exames e cirurgias, e tenta responder sempre ao aumento da procura, com mais recursos e mais disponibilidade. Associemos a isto as diferenças de conhecimento e de acesso das populações mais desfavorecidas e, facilmente, perceberemos que as iniquidades no acesso à saúde se tornam inevitáveis e os custos sobem desproporcionadamente face aos seus reais benefícios.
No caso português, encarar a liberdade de escolha como forma de aceder a serviços de saúde (públicos ou privados) pagos depois pelo Estado ou por uma seguradora pública (idêntica à ADSE) seria o fim do SNS e o colapso anunciado do novo modelo. As classes sociais com mais informação e mais poder de compra, rapidamente se mudavam para o consumo em ambiente privado, para as situações de pequena ou média complexidade. Os gastos com esses doentes, até pela forte indução da procura pela oferta, tenderiam a aumentar exponencialmente, deixando exauridos os fundos seguradores disponíveis. O Estado, como ressegurador, teria que assumir essas novas responsabilidades. Entretanto, o SNS, então a caminho da falência e do empobrecimento de meios, ia ficando cada vez mais para os mais pobres, mais velhos ou residentes em zonas de baixa densidade do interior e, ainda, e se tivesse alguma capacidade residual, para as chamadas doenças catastróficas, como o cancro, os AVC,os grandes acidentados, os cuidados intensivos, os transplantes,etc., e para a Saúde Pública. Instalava-se a dualidade no acesso a cuidados de saúde, com consequências irreparáveis em matéria de descriminação social, face a um consumo de cuidados profundamente assimétrico.
O liberalismo e a crença incondicional nos mecanismos de mercado não são, como se viu, boas receitas para os sistemas de saúde. Trazem mais descriminação, custos mais elevados e insustentabilidade. Os partidos da direita, que tanto apreciam as regras do mercado, parece não o terem estudado bem na área da saúde. As propostas que apresentaram são inviáveis e perigosas. Ignorância, imaturidade e excesso de ideologia liberal….