Sempre que algum ser humano se curva ensimesmado sobre o seu smartphone, o olhar do vulgo alheio é perentório ao afirmar que este mundo está perdido. Imediatamente se assume que o cidadão em causa está a afetar os seus parcos e inúteis neurónios ao consumo de porcarias sem sentido. Mesmo quando um aparelho destes tanto fornece debates em caixas de comentários de Facebook como James Joyce, tanto nutre o cérebro do utilizador com o jogo da serpente como com a Bíblia Sagrada. Tanto permite acompanhar os desenvolvimentos do mais recente casamento da Luciana Abreu como ler tudo sobre a Teoria da Fenda Dupla. Neste aparelho pode-se ler (ser) Shakespeare ou Fernando Pessoa.
Não é difícil imaginar uma mente inquieta a rascunhar num Samsung, num Huawei ou num iPhone nas margens do rio Tyne ou acompanhado por um absinto na Brasileira do Rossio. Ainda assim, presume-se invariavelmente que a alma-de-deus que se debruça compenetrada sobre um ecrã destes personifica a ralé do fim dos tempos. Terá sido assim no dealbar do livro impresso? Este mundo está perdido, aquelas pobres almas condenadas ali, inertes e inúteis sob sombras de figueiras, com os focinhos enfiados nesses malditos tomos, sem falar com ninguém, sem falar uns com os outros, as histórias contam-se é à roda da fogueira, ó ignara canalha, não nesses papiros malditos, queixar-se-iam os anciãos.
Nunca se sabe se a adolescente de cabelo violeta, a insuflar bolas de chiclete cor-de-rosa, acoitada com ar de enfado num dos lugares de trás do autocarro, com aquela aura carregada de quem lhe pesa a existência, não se estará a abastecer nesse preciso momento de informação fundamental para a conclusão que terá mais tarde, que servirá de chave para uma qualquer fechadura que só ela poderá abrir, para o bem de nós todos. Mesmo com aquele telemóvel, mesmo com aquela capa de proteção, com aquelas cores, apesar do franzir desconfiado do sobrolho.
Eu agora, por exemplo. Não sou o Fernando Pessoa nem o Shakespeare, não sou a miúda do cabelo lilás, mas vou neste preciso momento num Uber dos grandes, vai a família toda, e peguei no telemóvel para escrever a minha crónica quinzenal, que virá publicada na reputada revista VISÃO. Como de costume, vou no limite do prazo. Mas mal peguei neste utensílio do capeta, a minha mulher arregalou-me os olhos, num desses esgares de dilatar as narinas. Eu ia escrever sobre uma conversa que ouvi entre uns americanos que acabavam de se conhecer num restaurante de praia na praia da Cordoama, junto a Vila do Bispo. Tive de escrevinhar estas linhas como quem fura a espessa neblina do preconceito, mesmo sendo uma encomenda duma publicação de respeito. Não importa, é com o telemóvel, coisa boa não costuma ser.
Peguei no telemóvel, já se ouve ao longe o esvoaçar do arcanjo Miguel anunciando o Apocalipse. Vou aqui a dar aos polegares oponíveis, com a pontinha da língua de fora, a dizer que sim a tudo, a tentar sobreviver ao preconceito, a tentar manter-me do lado de cá da tona da água, as narinas da minha mulher cada vez mais dilatadas, o branco dos olhos cada vez mais raiado de rubra raiva, julgo que se seguirá um pontapé e finalmente chegámos ao Aquashow, o mais velho faz anos e viemos passar o dia de anos aos escorregas, vai ser a primeira vez deles, a conversa dos americanos em Vila do Bispo terá de ficar para uma próxima.
(Crónica publicada na VISÃO 1374 de 4 de julho)