A minha casa faz barulhos. Eu sempre morei em apartamentos, agora moro numa casa-casa. E as casas fazem barulhos, rangem. Estalam. Eu não fazia a mínima ideia. Nos apartamentos há toda uma miríade de ruídos quotidianos, mas são barulhos previsíveis, normais para mim, rato de apartamento que sempre fui. Passos agudos de cão no andar de cima, aquele barulho tricotado, picotado, sincopado do canídeo naquela sua ciranda doméstica. Os previsíveis ruídos humanos: vozes, conversas, discussões, quase sempre com aquela voz da professora do Charlie Brown, um linguajar de palavras impercetíveis mas que se percebem. Autoclismos, maquinaria doméstica no seu ronco diário de resistência e labor, lavar, secar, voltar a lavar, voltar a secar, aquela resiliência teimosa e resignada de máquina. Mas as casas estalam, rangem, as paredes mexem-se, o telhado faz crack de vez em quando. Eu não fazia ideia, não me habituei ainda.
As pessoas de casas dizem que é assim, eu não fazia mesmo ideia nenhuma. Não estou acostumado. Parece a terra a reclamar este amontoado de pedra e betão todo de volta a si. Dá a ideia de que se uma pessoa se distraísse por uns tempos encontraria a casa engolida por raízes, árvores a furar a taco do chão, trepadeiras a medrar pelas frechas do microcimento estalado do chão da cozinha, elefantes a passear na sala, osgas a devorar nacos de parede, símios pendurados em candeeiros numa azáfama de selva densa. Esta casa ainda por cima tem sótão. Ficámos uns dias sem lá ir e um tapete de Arraiolos foi devorado por traças.
Estamos numa luta. Viver numa casa é uma experiência amazónica. A casa está assente em chão. Em terra, mesmo. Passam lençóis freáticos por baixo, rios de lama. Um dia destes acordo devorado por formigas.
A Natureza manda os seus exércitos e a nossa vida doméstica resume-se a resistir. Todos aspiramos o céu, mas antes há que aspirar o chão. Tudo há de passar um dia, mas há que passar o tempo, há que passar um pano. Todos os dias, todos os dias. Passa-se a esfregona, esfrega-se os olhos e há que passar a esfregona outra vez. A erosão dos tempos lima as arestas todas, o pó chama tudo para si. É a maneira de a terra se limpar a si própria. Tragar tudo. A terra tudo há de comer, esta casa não será exceção. Mas não durante a minha vigia. Viver é resistir. Eu não vou desistir assim. A minha filha tem um ano e pouco e não tem qualquer tipo de consideração por esta batalha teimosa, constante, contra a entropia do mundo. Do alto da sua cadeira asperge migalhas, detritos, estilhaços de ordem vária. Lixo orgânico que se enfia por entre as fibras entrelaçadas do tapete que a mãe dela e eu comprámos em Marrocos, numa negociação implacável de que apenas a minha mulher seria capaz, eu jamais, e por tudo isto já se intui que andei há pouco de rabo para o ar a aspirar migalhada do chão, enquanto se ouviu um estalido assustador que não sei agora precisar se seria o telhado se seria um vértebra das minhas.
ASSINE AQUI A VISÃO E RECEBA UM SACO DE OFERTA