“Eu quis cantar uma canção iluminada de sol
Soltei os panos sobre os mastros no ar
Soltei os tigres e os leões nos quintais
Mas as pessoas na sala de jantar
São ocupadas em nascer e morrer”
Panis et Circenses, Caetano Veloso e Gilberto Gil
Uns a passear o cão, outros a passear aos pares, uns a passear carrinhos de bebés, outros nem é bem passear, uns parece que são os cães que os levam a eles, outros vão a ouvir música com headphones coloridos enquanto mastigam chiclete ostensivamente mas todos, que são quase todos, a vir de aviar uma receita na farmácia, a ir renovar o passe, a vir das finanças, a ir comprar um carregador para o telemóvel porque dá jeito ter um de sobra, a ir mudar o vidro do iPhone, uns a ir depressa à estreia de uma exposição, vão lançar os seus olhares cosmopolitas e modernos sobre quadros abstratos e comentar que realmente o pintor estava muito à frente do seu tempo enquanto engolem um espumante àquela hora que apetece tudo menos espumante, uns a vir de fazer o euromilhões, há uns mais velhos que vão pôr coisas a arranjar, porque estão naquela idade em que acreditam em mandar coisas para arranjar, guarda-chuvas, secadores, sapatos, varinhas mágicas, essas coisas assim. Depois levam encontrões dos outros, poucos, em muito menos abundância, são consideravelmente menos, em menor número, são os que parece que vão sempre dois passos atrás, sozinhos, parece que vão a passear fantasmas. São os que vão a olhar para coisa nenhuma, a viver para dentro, a olhar para o chão, ou através do chão, olhar que fura até à Austrália, são os que perdem autocarros mas tanto faz, preferem ir duas horas a pé, não sabem de onde vêm, não sabem para onde vão, não vêm propriamente de nenhum lado nem têm propriamente nenhum talho, repartição das finanças, mercearia, boutique, retrosaria ou snack-bar para onde ir. Não sabem para onde vão nem de onde vêm porque não nos é dado a nós, pobres almas sob o sol, saber tais mistérios e é nesse género de assunto que vão a pensar, daí os encontrões, vimos de cais de partida desconhecido e derivamos rumo a um porto qualquer, talvez nenhum, não sabemos, um dia lá atracaremos, ou então nunca, e a cada encontrão que dão aos outros, os que sabem de onde vêm e para onde vão, pedem sinceras, sentidas, profundas desculpas, lamentam o encontrão com sinceridade, sabem melhor, sabem que a vítima do encosto desajeitado não sabe que não sabe coisa nenhuma também, daí a amabilidade com que devemos tratar-nos todos uns aos outros, a amabilidade dos viajantes, e depois ficam a pensar que engraçado, encontrão é um encontro grande e de repente aceleram o passo, tiveram uma ideia. Os outros, que são a maioria, nem sabem o quanto lhes devem. Deviam é agradecer os encontrões.
Porque são estes, os que vão uns passos atrás como quem vai a passear não cães, não carrinhos, mas fantasmas, e que de repente mandam encontrões e aceleram o passo, que inventam os seus iPhones, os seus guarda-chuvas, as suas varinhas mágicas, que concebem as cantigas de amor que ouvem nos seus headphones e pintam os quadros que eles comentam de mão no queixo enquanto debicam espumante a contragosto porque a essas horas apetece tudo menos espumante.
(Crónica publicada na VISÃO 1355 de 21 de fevereiro)