A tão propalada greve cirúrgica dos enfermeiros pode ser abordada a partir de tantos ângulos diferentes que se torna quase difícil de comentar.
Há, desde logo, a questão das reivindicações. Será simpático dizer que são inteiramente legítimas, mas este não é, obviamente, o caso. Aumentos superiores a 30% e reformas aos 57 anos são reivindicações absurdas num País com os constrangimentos do nosso e num mundo com longevidades crescentes, em que se debate, precisamente, a necessidade imperiosa de adiar a idade das reformas.
Poderia, em alternativa, optar por debater o papel bizarríssimo de uma bastonária transformada em líder sindical que, objetivamente, extravasa as suas funções e compromete a imagem e a credibilidade da Ordem. Ou, como tem sido tantas vezes o caso, a escolha poderia recair no tema do financiamento da greve (que, devo confessar, pouco me ofende) e que tantas angústias existenciais tem provocado às monolíticas centrais sindicais. Ou, ainda, a questão dos obscenos custos sociais da greve.
Isto dito, acho que vale a pena olhar para além do lado mais conjuntural desta greve. E olhar mais longe significa tomar consciência do crescente divórcio entre a generalidade dos portugueses e as reivindicações corporativas da Função Pública.
Este fenómeno está ligado, por um lado, aos protagonistas concretos das lutas laborais. Ana Rita Cavaco – tal como Mário Nogueira – representa uma liderança histriónica, agressiva, passadista, desligada da realidade do mundo em que se move e absolutamente incapaz de passar qualquer mensagem que minimamente comova uma audiência que não seja a da classe que representa.
Mas o fenómeno tem raízes mais fundas que vão para lá das lideranças concretas. Uma destas parece ser a ideia que se vai generalizando e que postula que a Função Pública é uma casta à parte, com privilégios intangíveis para a generalidade dos cidadãos: a segurança no emprego, as idades de reforma e a carga horária semanal são apenas alguns dos exemplos mais evidentes. Acresce que, se é certo que o problema não foi inventado por este Governo, é bom que se diga que foi muito agravado por este Governo. Na hora de redistribuir rendimentos, o mínimo que se pode dizer é que não existiu uma preocupação de equidade entre os funcionários públicos e os trabalhadores privados.
Claro está que esta é uma generalização com elementos de injustiça, até porque assenta numa visão maniqueísta da sociedade e não pondera muitas das dificuldades inerentes a uma carreira no Estado. Mas o ponto aqui não é discutir a absoluta justeza da ideia, mas tão-só reconhecer que a dita perceção existe e que um fosso de hostilidade muito pouco saudável se vai abrindo entre trabalhadores privados e públicos.
Confesso não saber onde vai parar esta antipatia larvar, mas sei que é muito pouco salutar. E estou absolutamente convencido de que, no seu próprio interesse, os sindicatos e demais lideranças da Função Pública deviam pugnar pela sustentabilidade de um modelo que não pode obviamente ser o de um País, o de dois sistemas.
A prazo, talvez a um prazo mais curto do que imaginamos, esta incompreensão e este ressentimento encontrarão formas de expressão nas políticas públicas. Basta, aliás, perceber que são só elas que autorizam a firmeza e a rigidez de um Governo que já percebeu para que lado pende a opinião pública. O que vem aí não é bonito, mas tem responsáveis.