Nas últimas semanas pusemos mais um português na galeria dos melhores do mundo. Mesmo sem a selfie com o Presidente, a proeza está lá…
Agora é o jovem Rui Pinto que pede meças com Julian Assange e Edward Snowden para a categoria de melhor whistleblower – lançador de alertas, parece que se diz… – com a vantagem de este ter pirateado dados que verdadeiramente interessam às massas: coisas de bola.
Segundo a eurodeputada Ana Gomes, o jovem de Mafamude “pode ter prestado um enorme serviço à comunidade denunciando vários esquemas de corrupção entrincheirados…”
É uma reação típica do desnorte dos políticos ultrapassados pela revolução tecnológica, dos que nem a compreenderam. Levar Ana Gomes e o seu mantra a sério seria desistir de vez da política e regressar ao estado pré-Hobbesiano da vida.
A internet e uma quantidade enorme de aparelhos baratos levaram quase metade da Humanidade a colocar à disposição das máquinas ditas “inteligentes” e “personalizadas” (praticamente todas hoje em dia, literalmente do carro ao aspirador) um brutal acervo de informação sobre os nossos interesses, gostos, medos e preconceitos. Enfim, sobre nós, ponto.
Nada pode ser mais valioso. A coleção dos nossos dados e o que com eles se pode fazer mudou a natureza do capitalismo e das sociedades em que vivemos.
Neste surveillance capitalism – como bem define e desenvolve Shoshana Zuboff –, o bem fungível somos nós. A nossa alma ou como nos mudar a alma é o ativo mais precioso que se pode acumular na História. E tanto faz que seja para formatar seguros, condicionar relações laborais, cuidados de saúde ou aplicações financeiras… ou até para escolher os políticos.
É fácil demonizar os gigantes como a Google e o Facebook, que inauguraram esta atividade predatória em larga escala, mas o capitalismo de vigilância, o devorador de dados, chegou para ficar e não vai ser o desmembramento dos gigantes que faz o paradigma recuar.
Os avanços na tecnologia mudaram a maneira de pensar. Os significados de possuir, partilhar ou ter privacidade são completamente diferentes do que eram no início da minha vida. Até profissional.
Nada é mais político. Nada devia preocupar-nos mais. Ou avançamos para o futuro com a confiança de que podemos usar as vantagens da revolução digital sem comprometer a nossa privacidade, as nossas decisões e a nossa autonomia ou decretamos o maior fosso de sempre entre poucos, muito poucos, e todos os outros.
A segurança, o controlo da violência, a organização de um módico de justiça são as primeiras tarefas da política. Aquelas que primeiro levam à necessidade de organizar a coletividade. Devolver tudo isso a justiceiros que ninguém controla é o contrário do que devia ser a mensagem dos políticos.
A política não inventou os “sofisticados” produtos financeiros que fizeram rebentar a crise. Mas onde estaríamos se, apesar da injustiça, não tivesse havido política de mão bem visível para travar o colapso financeiro global?
Com o futuro digital acabará por acontecer o mesmo. Como explica David Runciman, quando a tecnologia escapa ao controlo da política, os políticos são confrontados com duas opções: ou se adaptam à mudança ou insistem que esta se adapte a eles. Numa democracia política, a única solução passa por os políticos se adaptarem e partirem em busca dos novos paradigmas de regulação.
Apoiar a coleção ilegal de dados e o lançar de alertas é como dourar a imagem do pistoleiro – que faz justiça – no antigo Oeste. Nunca sabemos para que lado vai virar a arma.
Não foi para isto que evoluímos.