Toda a água que existe neste planeta é a mesma desde o princípio do mundo. Até à última gota. A água, sob qualquer forma ou estado, não vai para lado nenhum nem vem de lado nenhum. Está presa a esta bola azul que boia à roda sabe-se lá porquê, tal como cada um de nós, criaturas. Às vezes é mar, outras vezes é ribeiro, outras é vapor que sai da chaleira, outras é gelo que enrijece os rios da Antártida ou refresca os copos de gin de alegres cidadãos em rooftops ao pôr do Sol, outras serve para tomar banho, lavar a roupa nos tanques municipais, regar canteiros, tanto faz, ela anda às voltas e vai de nuvem a chuva, passa por lágrima, vai ao mar, vem, circula nos canos, nos esgotos, nas destilarias, no ar, não para. Mas nem uma gota se perde. Nem um átomo se poupa. Nem um copo se gasta. Será assim com a alegria e a tristeza? Talvez andem por aí de alma em alma num sistema de vasos comunicantes, numa alternância constante.
De cada vez que eu ando mais melancólico, algum cidadão pega, aproveita e dança alegre um funk brasileiro ou qualquer coisa do género, algures neste nosso pequeno mundo sem fim. Pode ser que abuse da alegria e se embebede nalgum etílico caseiro daqueles manhosos, de alambique artesanal destilado numa garagem qualquer e acorde agarrado à almofada, com aquela neura da ressaca maldita a pensar meu deus, porquê, e eu acorde a assobiar uma canção alegre dos Queen, ou dos Abba, tanto faz, a alegria que decida, ela anda aí de alma em alma, alternando com a tristeza, as duas irmãs gémeas, as duas na mesmíssima quantidade, até à última gota, desde que o mundo é mundo, talvez seja assim, ora alegria líquida, ora tristeza gasosa, ora euforia em cubos de gelo, ora neura em ponto de pré-ebulição. O desgosto de amor de algum autor de canções no Iowa transforma-se na melodia que alegra o corte de bolo na boda de um casal alegre de Mangualde, eles sorridentes para a fotografia e a canção a dar nos altifalantes (não se ouve na fotografia mas percebe-se), os convivas a rodopiar guardanapos e a assobiar alto com a língua na ponta do círculo descrito pelo indicador e o polegar (os que conseguem: a Humanidade divide-se entre os que sabem assobiar assim e os que os invejam por isso). Há gelo a chocalhar em copos, abundam taças com o fruto da videira, do trabalho do Homem e da água, dali a nada os corpos saldam essa liquidez em xixi, em lágrimas, em suor, e ela lá acaba por voltar para as nuvens, e os convivas lá se vão entendendo, uns sorriem para a esquerda, outros para a direita, uns entristecem-se, outros alegram-se, a alegria duns é a tristeza dos outros e a coisa lá anda, como um gás que anima e desanima, num sistema de vasos comunicantes bem oleado, numa engrenagem que bole desde o princípio do mundo, desde o sopro primordial. Por exemplo, eu, presentemente, encontro-me bastante bem. Acordei cedo, fiz a minha rotina de ginástica, dei um beijinho à minha mulher, fui levar as crianças à escola, acabo a minha crónica daqui a nada e desço para o estúdio, estou a gravar uma música nova, está a sair bem, tudo a correr bem. Algures neste nosso minúsculo planeta sem fim alguém se vê privado desta minha alegria como quem sobra dum lençol que é curto, alguém que provavelmente estará a verter as suas mágoas para dentro dum livro, sabe-se lá. Talvez ganhe um dia o prémio Nobel. Ou não. Mas que não se preocupe: isto já me passa.
(Crónica publicada na VISÃO 1351 de 24 de janeiro de 2019)