Natal de 1984 e pela família afora a constar à boca calada que o meu tio Sérgio iria receber da minha tia uma guitarra e eu sem saber o que era uma guitarra e depois no 24 à noite um embrulho gigante em forma de bacalhau e uma caixa castanha, triangular, com uma Squier Sunburst lá dentro, igual à do Bryan Adams no Run To You, então isto é que é uma guitarra, eu que nem ligava muito a música, detestava a que passava à tarde na televisão, execrava os Duran Duran e os Pet Shop Boys, do Bryan Adams gostava, isso gostava, a minha mãe tinha-me comprado a cassete do Cuts Like a Knife no El Corte Inglés de Vigo e eu prezava muito aquela fita, aquelas músicas bonitas, ouvia no rádio amarelo da minha irmã, eu que nem ligava muito a música, e de repente o meu tio com uma igual, aquilo palpitou-me, depois os meus tios a montarem os instrumentos no quarto de baixo da casa da minha avó Helena em Sangemil, que era quarto dos brinquedos e agora já não, ia ser dos instrumentos, e aqueles ensaios intermináveis, música alto, e uma faísca qualquer que se deu dentro da minha barriga, um choque elétrico, eu sempre lá enfiado a coscuvilhar e quando eles se iam embora eu a abrir as caixas das guitarras para as cheirar, cheiravam a tabaco e a ferro e a estofos de táxi, eu em 1988 na escada da loja Si Bemol, em Perafita, o meu tio Sérgio a ensinar-me o baixo da Like A Rolling Stone num Samick e o cheiro do saco, cheirava a cão molhado e a adrenalina, uma faísca qualquer dentro da barriga, um choque elétrico, e depois a festa de Carnaval dos convívios da paróquia de Cristo Rei, a família toda a almoçar na Proa, em Matosinhos, os meninos logo à noite têm que ir de blazer e eu com 38 de febre por causa do pânico, cólicas, porque é que eu aceitei meter-me nisto, depois o verão e o piquenique em Montalegre, e quem é que também ia, o Rui Veloso, o Rui Veloso da cassete do Mingos e os Samurais que tinha saído nessa semana, o meu tio Sérgio a dizer Rui, este meu sobrinho tem jeito para tocar baixo e ele ó júnior, nunca te metas na música, foge, isso sei eu, só de me lembrar das cólicas, e uma faísca cá dentro, um choque elétrico, engolir em seco, depois em outubro o concerto de Rui Veloso e os Optimistas no Coliseu do Porto e eu que nem era de grandes euforias a mandar pontapés na varanda do camarote e estuque a cair na cabeça de um senhor careca lá em baixo, e a faísca cá dentro a cortar como uma faca, a Fender Redondo coreana que os meus pais me deram no Natal e eu a tentar tocar as músicas dos Eagles, o concerto na semana cultural da escola e as cólicas de morte, porque é que alinhei meter-me nisto, ainda por cima era eu a tocar guitarra na Long Train Running e na Sweet Child of Mine, uma Yamaha Pacifica do meu primo ligada a um Roland Jazz Corus do meu tio Sérgio, os dias inteiros enfiados no quarto a aprender os solos do Mark Knopfler, as linhas de baixo do Blood Sugar Sex Magik, o Passos a ensinar-me a Garota de Ipanema na viola, eu enfiado no quarto a tentar sacar as harmonias do Totalmente Demais do Caetano, o Salsa a ensinar-me os acordes tortos, trítonos e anacruses, a primeira maquete dos Azeitonas e olha, quando dei por mim já não havia nada a fazer e a culpa era da cassete do Bryan Adams, do embrulho de Natal em forma de bacalhau e das caixas das guitarras do quarto de Sangemil que cheiravam a cigarro, a ferro e a estofos de táxi e a quantidade de vezes que eu dei o Mingos e os Samurais a alguém e tive de voltar a comprar, dezenas de vezes, eu a dizer ouve, isto não melhora mais do que neste disco e o raio da faísca ainda a queimar cá dentro, não fui eu que me meti na música, mestre, a música é que se meteu em mim como se fossem (e são) choques elétricos, e a quantidade de vezes que me lembro do quarto de baixo da casa de Sangemil.
(Crónica publicada na VISÃO 1347 de 27 de dezembro de 2018)