Lá fora era o Minho, lá fora eram as memórias de tantos invernos e de outros tantos verões de um azul bem passado. Nós reuníamo-nos à mesa de sempre, num ritual de festa familiar de madeira escura, dezenas de vezes repetido e de que só a presença do rapaz se fazia ausente. Redondos, numa conversa adivinhada, circular, sem fio, sem pavio. O tempo fazia-se irregular, ora suspenso ora galgando minutos ora regressando ao passado sempre presente de todas as memórias mil vezes repetidas. A broa, o primeiro vinho, a sopa a escaldar. Não são iguais todas as famílias felizes?
Foi assim, ao ritmo das conversas que podem ter-se milhares de vezes por convocarem infâncias que não morrem, que regressámos ao meu avô paterno. Não posso asseverar quem o acordou para ali. Figura silenciosa, de uma discrição indizível, passadas frágeis, palavras medidas. Indissociável, na minha mitologia de rapazinho, de uma braseira perdida na penumbra e de uma revista Historia (assim mesmo, a francesa) que era o princípio e o fim de todas as visitas que lhe fazíamos. Estávamos – estiveram, melhor dizendo, porque eu nem sequer era projeto – em 1940. Talvez 41, talvez 43. Durante a guerra. Não estou seguro de que alguém tenha dito que era o dinheiro que rareava. Talvez fosse – porque a vida de um juiz na província não era folgada. Mas talvez fosse só a guerra, essa memória que não é minha, mas que me esforço por fazer presente para que a geração dos meus rapazes não possa repeti-la. Adiante. Perco-me. O que é certo é que, naquela precisa noite de quarentas, a minha avó tentou disfarçar aquilo que, em bom rigor, era já absolutamente indisfarçável: os tempos não estavam fáceis e faltavam as ervilhas. Imagino que com elas, muito mais. Mas disso não reza a História. O que é certo é que o arroz que chegara à mesa fazia-se um deserto austero de uma brancura imensa. O arroz que era, ou seria, de ervilhas.
Incapaz de uma palavra menos gentil, muito menos de um elevar de voz, o meu avô, desconsolado com a monotonia insossa da travessa que sonhara enfeitada, sussurrou para dentro: “Apparent rari nantes in gurgite vasto” [Raros no vasto mar se veem nadando.] Assim, baixinho, de olhos cravados no colo, evitando cruzar os da minha avó, célebres de fúrias que eu ainda viria – muito justamente – a conhecer. E de facto as ervilhas tomavam ares de náufragos. Eneias e os seus, borda fora, minúsculos, raríssimos, sem sombra de esperança, no vastíssimo oceano de arroz encapelado.
E logo alguém – regresso ao jantar de hoje – escolheu um vinho. A conversa seguiu para outras paragens, outros portos, outros cais, todos repetidos, todos conhecidos de outras tantas noites em volta da mesa circular que era o nosso planisfério. Eneias e os seus deram lugar a um pernil, pleno de abundância e de batatas agarradas com uma firmeza que só têm as coisas da terra. Virgílio, Eneias, o meu avô, o seu gosto pelos clássicos e a delicadeza racionada de um mundo de ontem, que já não há, foram-se desvanecendo, lentamente, por entre o ritual ruidoso da festa, não menos feliz, que era do meu pai, seu filho.
Mas eu deixei-me ficar, mais uns momentos, a pensar naquele Natal profano de quarentas. Natal sem ervilhas, Natal de uma guerra surda lá longe que a Europa não pode esquecer. Natal de convocação dos clássicos e de uma gentileza indizível. E, farto de presente e de política, deu-me para celebrá-lo nesta crónica.
(Artigo publicado na VISÃO 1346, de 20 de dezembro de 2018)