Recordo-me de ouvir a história de um primo afastado que morreu no dia em que eu nasci. Trabalhava no fundo de uma pedreira e morreu esmagado por um bloco de mármore. Jamais esqueceria essa imagem, e passei a olhar com profunda admiração os homens que de manhã cedo se juntavam no Café do Zé Russo e seguiam para as pedreiras. Eram homens que desciam ao fundo das pedreiras no verão com temperaturas a chegar aos 50 graus e no inverno gelados, rodeados de mármore e pó.
Esse trabalho terá sido mais bem pago do que o trabalho no campo, mas sabia-se que quando havia azar era fatal. Em 1986, o sindicato dos trabalhadores das pedreiras organizou em Vila Viçosa o 1º Encontro sobre Higiene e Segurança no setor dos mármores, para pressionar as empresas a garantirem condições laborais, pois apenas 14% dos locais de trabalho possuíam refeitório em condições; só 2,5% tinham instalações sanitárias em condições aceitáveis; eram residuais as empresas onde existiam capacetes, vestuário, botas, luvas e postos de socorro. Denunciaram que, apesar da elevadíssima percentagem de acidentes, muitas empresas negavam o transporte dos feridos para as unidades de saúde e concluíram que a prioridade era fazer cumprir o Regulamento de Segurança e Higiene no Trabalho de Minas e Pedreiras, aprovado mas nunca aplicado. Melhorias aconteceram, aquém do possível e necessário.
No dia da tragédia de Borba estava em Estremoz, vi ao longe a impressionante montanha de entulho do mármore que se erguia atrás do cemitério, e, poucas horas depois, a terra engoliria três dos seus. Os mineiros e os trabalhadores das pedreiras passam mais de metade da vida debaixo de terra ou no fundo dela, não merecem morrer assim e a culpa não pode morrer solteira. O licenciamento da exploração de mármore é da responsabilidade da Direção-Geral de Energia e Geologia (DGEG) e das câmaras municipais (dependendo da tipologia da pedreira), exige um Plano de Pedreira que integra um Plano de Lavra e um Plano Ambiental e de Recuperação Paisagística. Anualmente, as empresas são obrigadas a apresentar um relatório técnico sobre níveis de produção, execução da exploração e recuperação, entre outras informações. Que tipo de fiscalização tem sido feita ao longo dos anos? Os riscos eram conhecidos por empresas, câmara municipal e DGEG, nada foi feito e continuou a exploração da pedreira, mesmo colocando em perigo quem nela trabalhava. Todas as responsabilidades devem ser apuradas.
Não abriu telejornais nem fez manchete de jornais, mas a aprovação da proposta do PCP de alargamento aos mineiros das lavarias e aos trabalhadores das pedreiras do regime de reforma antecipada dos mineiros do fundo da mina é uma vitória de civilização. Custou a greve e dias de salário perdidos, custou a repressão das multinacionais que exploram os minérios do país, mas valeu a pena a luta e a coragem. No dia em que foi aprovada lembrei–me também das vítimas da tragédia de Borba, dos trabalhadores das pedreiras, dos mineiros de S. Pedro da Cova, da Panasqueira, de Aljustrel e de Castro Verde. Lembrei-me dos homens que descem ao fundo da terra e fazem o mundo avançar.
(Artigo publicado na VISÃO 1344, de 6 de dezembro de 2018)