A dignificação do Parlamento é condição sine qua non de dignificação, ou mesmo só defesa, da democracia. E ninguém pode dar maior contributo para ela do que os próprios deputados – pela seriedade, a qualidade e a dedicação do seu trabalho. Ou, ao invés, dar maior contributo contra ela… Um deputado que disto não tenha consciência, ou que tendo-a não aja em conformidade, mormente no plano ético, não merece ser deputado e trai a alta responsabilidade de ser representante do povo – não só e não tanto de um partido – no órgão por definição mais simbólico da liberdade e da soberania popular.
Em várias décadas de jornalismo, para mim inseparável do exercício da cidadania, numerosas vezes escrevi sobre o tema, em particular nesta última perspetiva. Sustentando a necessidade de uma maior exigência política e ética, de mudanças no sistema eleitoral, no funcionamento da Assembleia da República (AR) e nos comportamentos. E também para pugnar por isto, a certa altura tive participação ativa na criação de uma realidade política nova e fui deputado. Trago-o à colação porque em vez de me centrar no “caso Silvano”, sobre o qual já tanto se disse, prefiro lembrar que algumas péssimas práticas vêm de longe e não terão sido de todo eliminadas.
Recordo, por exemplo, que quando chegámos à AR um nosso deputado, eleito pelo círculo de Viseu, ao fornecer os seus dados indicou a residência em Lisboa. O funcionário disse-lhe que não podia, assim deixava de ter direito às ajudas de custo e deslocações. Ele insistiu: tinha casa no distrito, mas a residência era em Lisboa; o funcionário, por sua vez, repetia que não podia ser. E custou, até ficar registada a verdade e não a mentira rendosa, “institucionalizada”. Havia, aliás, outras inadmissíveis coisas: deslocações e despesas “cobradas” e não feitas, presenças invisíveis e presenças passageiras de quem parecia fazer só do hemiciclo uma base para jogos políticos e/ou negócios, etc. Isto numa legislatura com um labor então considerado único, e com uma qualidade média de deputados que com o tempo terá diminuído.
Escândalo maior, porém, com não poucos processos-crime contra deputados, foi o das “viagens-fantasma”. Uma vergonha – mas só um deputado condenado. Porque os outros processos prescreveram. Também por isto tenho sustentado que mais do que o resultado final dos processos contra políticos, importa saber os factos neles apurados. Que não foram tornados públicos. E acontece que no PSD, o partido com mais parlamentares suspeitos, um deles até veio a ascender a líder! Mais acontece que fui ouvido no processo, como testemunha, ficando com a nítida ideia de que a minha assinatura tinha sido falsificada por alguém dentro do esquema criminoso. O magistrado que me ouviu advertiu-me que estava obrigado a segredo de justiça e nunca nada vi divulgado e esclarecido como se impunha.
Não sei se dessas antigas “coisas” algo se mantém, mas temo que nem tudo haja sido extirpado… Para o ser, é preciso transparência total, coragem para denunciar o que continue errado – para não dizer “corrupto” – e corrigi-lo com urgência. Em defesa, insisto, do Parlamento e da democracia.
(Artigo publicado na VISÃO 1341, de 15 de novembro de 2018)