Somos sempre suspeitos para falar dos nossos amigos. Mas, por outro lado, conhecendo-os melhor que ninguém, a nossa perspetiva será mais fiel do que a de quem os olha de longe. Além disso, quem mais tem a obrigação de lhes louvar os talentos? Pois esta crónica serve para isso mesmo. Para falar com orgulho indisfarçável do meu amigo Hazul.
Para os mais distraídos, o Hazul é um artista plástico portuense, que começou no graffiti; popularizou-se na street art, mas faz muitas outras coisas (como aguarela, serigrafia, pintura e ilustração). Quem tem passado pelas ruas do Porto já viu com certeza as suas figuras misteriosas, que parecem nossas senhoras sem rosto, rodeadas de ondas, peixes e outras formas mais ou menos abstratas, nos recantos do centro histórico. Já viu também o grande mural ao pé da estação da Trindade, com uma dessas figuras femininas, em enormíssima escala, e já se habituou a reconhecer essas figuras como um dos símbolos da cidade.
Pois é. O Hazul é o meu amigo Z. Começámos no graffiti praticamente ao mesmo tempo e tive a honra de ser uma das duas testemunhas que o viram pintar uma parede pela primeira vez. Traço certo, de quem já tinha experiência no tag, e surpreendentemente seguro (como é até hoje). Desde então nunca mais parou de pintar na rua. Na altura assinando como PZT e dedicado às letras, pequenas quando havia poucas latas e progressivamente maiores, mais coloridas e sofisticadas, à medida que o hábito ia aguçando o engenho.
Eu deixei o graffiti pouco depois, mas ele dedicou-se sempre e, ao contrário de muitos artistas, nunca deixou de pintar na rua, mesmo depois de se tornar um artista aclamado e de ter muitas encomendas.
Uma das coisas que mais admiro nele, além desse compromisso com a rua, foi ter transformado as suas maiores dificuldades na sua marca e estilo próprios. E, depois disso, ter conseguido que a sua arte espelhasse totalmente o seu imaginário e universo de interesses. Digo isto porque sempre lhe foi mais fácil trabalhar a caligrafia do que o figurado, e naturalmente os seus primeiros anos de graffiti, foram dedicados exclusivamente ao lettering. A figuração não lhe era fácil nem intuitiva e, ao contrário de muitos companheiros de pintura, evitava desenhar outras coisas que não fossem letras, mesmo que as suas curvas fossem cada vez mais exuberantes e complicadas.
Com o tempo deu-se o grande salto e dessas curvas começou a construir formas, em desenhos que nasciam de linhas fortes, com ondas que sugeriam silhuetas, mantos e elementos naturais. As letras diluíam-se em formas que adivinhavam elementos e, nesses elementos, os seus interesses foram sendo revelados. As composições denunciavam as suas leituras sobre religiões antigas, geometria sagrada, arte sacra, esoterismo, civilizações desaparecidas, espiritualidade. E o “velho” PZT do graffiti, tantos anos dedicado ao wild style clássico, tinha-se transformado em Hazul. Na estética, como na ascética, a metamorfose era evidente, e foi essa evidência que fez do writer um artista maior.
Desde então, ano após ano, com muito trabalho e dedicação, tem ganho o reconhecimento merecido. Já fez rótulos de garrafas de vinho, estampas para marcas de roupa, já fez um mapa das suas obras nas ruas do Porto, já foi convidado para pintar hotéis de luxo, já levou a sua arte a muitos lugares diferentes, de Paris a Ponta Delgada, da Costa Rica à Quinta da Fonte.
Mas as melhores conquistas, as mais simbólicas e emblemáticas, foi ter sido convidado para fazer um grande mural na nossa escola secundária, ter pintado (a convite da CMP) o bloco do bairro social em que cresceu e, finalmente, ter desenhado o novo equipamento comemorativo dos 125 anos do FCP. Honraria máxima para um portista como ele e a única coisa do mundo que me faria envergar uma camisola de futebol. Posto isto, não se admirem se me virem passar na rua, toda vaidosa, com a t-shirt do FCP. É do meu amigo Z!
(Crónica publicada na VISÃo 1330, de 30 de agosto de 2018)