No final dos anos setenta o meu pai fazia Porto-Lisboa à segunda para voltar à sexta. Todas as semanas. Os autocarros Terra Nova demoravam, na melhor das hipóteses, seis horas a fazer os trezentos quilómetros que separam as duas cidades, com paragem em várias localidades, onde saía e entrava gente. A meio do caminho, no quilómetro cento e cinquenta da estrada nacional número um, a camioneta parava para que os passageiros pudessem jantar. E foi no bar da bomba de gasolina, com poucas mesas cá fora e uma enorme fila para o wc, que todos lambiam os beiços com um prato de arroz de tomate malandrinho.
O Bar Shell, como estava assinalado nas canecas de barro com que serviam o vinho, além do melhor arroz de tomate do mundo, tinha boas chamuças, croquetes, panados, bolinhos de bacalhau e filetes, dispostos sobre o balcão para que o amontoado de fregueses pudesse ir escolhendo. Na confusão dos pedidos, não havia dúvidas, já sabiam que o meu pai queria chamuças. Era cliente mais do que habitual. E até hoje relembra o prazer dessas refeições apressadas na berma da estrada nacional mais movimentada do país.
A freguesia era tanta que, um dos empregados, conhecido por ser sósia do outrora candidato presidencial Soares Carneiro, andava a recolher assinaturas para concorrer ao livro dos recordes do Guiness. Gabava-se de já ter servido tanto arroz de tomate como para encher uma piscina olímpica, e ambicionava ver o seu nome imortalizado entre os grandes recordistas do mundo. O sistema all you can eat tem destas coisas e, na verdade, já se viram ambições bem mais estúpidas neste nosso planeta tão competitivo.
O Bar Shell precisava de crescer, os comensais não paravam de chegar em autocarros e aquele pequeno balcão repleto, não só não dava vazão ao fluxo de clientela, como não fazia jus à excelência do arroz de tomate. Fizeram-se as obras e, alguns quilómetros acima, inaugurou o Manjar do Marquês.
Um grande salão, muitas casas de banho, um balcão com dezenas de metros, uma cave para grandes eventos e um espaçoso parque de estacionamento. Mesas e mais mesas para acomodar os viajantes. Uma decoração rústica, com tranças de cebola penduradas. E um belíssimo creme queimado para coroar o repasto.
Poucos anos depois, finalizada a A1, foi no salão do Manjar do Marquês que se deu a festa de final de obra, com responsáveis e empreiteiros. E foi lá também que começou a escassear a freguesia, quando a nacional perdeu o tráfego para a autoestrada e já nem os autocarros paravam para que os seus passageiros comessem arroz de tomate a escaldar nos dez minutos que tinham. As mesas vazias eram uma desolação…
Felizmente, com o passar dos anos, os viajantes perceberam que nas estações de serviço se come caro e porcamente, e que sair da autoestrada, mesmo tendo que fazer mais meia dúzia de quilómetros, valia muito a pena. Assim, as filas do Bar Shell voltaram ao Manjar do Marquês. Famílias, peregrinos, motoqueiros, equipas de clubes desportivos e até turistas, enchem a pança de arroz de tomate e salgadinhos. Claro que, lá no meio, estão também os músicos, sempre de carrinha para baixo e para cima (sobretudo no verão), com as suas equipas e muita fome de comida de conforto.
Foi assim que eu, tantos anos depois, me tornei cliente habitual, como o meu pai. Confesso que não tenho o mesmo grau de devoção ao arroz de tomate, nem as mesmas memórias afectivas que o ligam ao pequeno bar na berma da nacional. Mas não posso deixar de me sentir em casa, nem de sorrir cada vez que me lembro de ser pequenina e de o meu pai dizer em tom irónico, entre duas garfadas de arroz de tomate e uma trinca numa chamuça: “Um dia quando casares, a festa vai ser no Manjar do Marquês!”