Andar de avião cansa-me a alma. Cansa-me o músculo da alma, naquele cansar físico de levantar ferros no ginásio. O meu espírito fica alerta, entra imediatamente, de forma automática, naquele esforço anaeróbico que não se permite ao descanso. Quanto mais flácido o cérebro (do cansaço físico do concerto da véspera, da noite mal dormida, do corpo a ser conduzido à vara como gado no curral do aeroporto, tira cinto, põe cinto, mostra o cartão de cidadão, corre para a gate), mais a rega automática do espírito envia a sua sonda incansável em seu redor, aspergindo o seu sinal inquiridor em todas as direções, numa vigilância sem descanso. Não consigo evitar, olho para as pessoas todas de olhar ruminante e manso, e o cérebro começa a unir os pontinhos do tracejado que não se vê, só se intui. O senhor aqui ao lado, com certeza francês (pode ser belga), de bigode gaulês, cor de Asterix, magro, de uma magreza prática, funcional, de óculos leves, relógio de pulso com ar de que já foi mandado para arranjar várias vezes (ainda há pessoas que mandam coisas para arranjar), com roupas práticas, funcionais, compradas na Decathlon da sua área de residência, sapatilhas confortáveis, pochete confortável, tudo comprado com tino, com noção dos preços, com noção da durabilidade, do conforto, pagos na caixa, claro que tem cartão da Decathlon e sabe a quantas anda, o saco bem arrumado na mala do automóvel cinza-rato impecavelmente estimado, limpo, revisões feitas na marca, a ida automática para o apartamento de solteiro na zona residencial onde mora, o arrumar das coisas no armário, aquilo tudo disposto e organizado de uma maneira que só ele sabe, da janela do quarto vê-se um parque infantil e uma mãe de galochas amarelas com a filha de galochas também amarelas e aqueles pompons nos ouvidos que parecem uns headphones (no caso da miúda, pompons cor-de-rosa, no caso da mãe, pompons brancos) e o senhor francês aqui ao meu lado no 11D (eu estou no 11E) a dormitar com o queixo por cima da mão, numa pose ergonómica, civilizada, de quem vive para não incomodar o próximo, eu aqui a escrever no telemóvel já lhe mandei duas cotoveladas, e ele a sonhar com a mulher das galochas amarelas, no sonho veio cá em baixo e meteu conversa, falou sobre o frio, está tanto frio que se vê a respiração, diz ele, a mulher das galochas concorda e ri-se um sorriso tímido que o encanta. No 11F vai uma miúda a estudar, a ler sobre Semiologia do Fígado, da Vesícula e Vias Biliares, vai há uma hora na mesma página, não vai a estudar coisa nenhuma, irá a pensar em quê? Vai com os cadernos empilhados, tudo muito arrumadinho, parece a gaveta das camisolas do francês, vou aproveitar o voo para estudar um bocadinho, disse ela à mãe antes de embarcar, agora tenho de desligar, boa, filha, e ela com tudo sublinhado a cores, sublinhados perfeitos, a régua, é como eu era, mil vezes perder tempo a sublinhar tudo direitinho, com cores, do que realmente ficar a saber sobre as vias biliares, que coisa horrorosa. Ao chegar ao aeroporto a mãe à espera, então filha, foi giro na Madeira, foi, esta minha filha não fala, o que se há de fazer, o caminho todo a olhar pela janela e a mãe a tentar recolher o olhar da filha de volta para dentro do carro como quem recolhe um papagaio de cordel em dia de ventania. “Abcesso hepático piogénico”, ela a pensar que raio de nomes, como é que querem que eu decore assim. Tudo conhecimento inútil, na farmácia do tio não vai precisar de saber nada destas coisas, vai ter a bata com o nome, dra. Sara Silva, e vai ser o dia todo a vender benurons e brufens, um dia vai-lhe aparecer uma miúda da idade dela de ar envergonhado e bochechas coradas a pedir um teste de gravidez e ela vai ter um bocado de inveja. Dava-te já a bata a dizer dra. Sara Silva e era mas é eu aí mas não, perdi anos de vida a ler sobre vias biliares e abcessos piogénicos e agora isto, vai querer contribuinte na fatura?
(Crónica publicada na VISÃO 1313 de 3 de maio)