25 de Abril sempre foi dia de festa. Desde pequenina. Desde que ouvi o meu pai contar entusiasmado como tudo aconteceu. Descrever o Portugal anterior: viúvo, beato e sinistro, como Salazar. Falar sobre a guerra injusta que se travava nas colónias e de como os soldados estavam cansados de morrer e matar por uma causa injusta. Dizer que os meus tios também tinham estado na guerra, e de como nos aerogramas e postais, que li eu própria anos mais tarde, descreviam aquela terra cor de ferrugem, demasiado diferente da paisagem familiar para ser portuguesa. Explicar a valentia e justeza de Salgueiro Maia (que, por isso, se tornou um dos meus heróis). Traduzir as letras do Zeca para eu perceber quem era a formiga no carreiro que andava em sentido contrário. Mostrar os desenhos a grafite de Cunhal na cadeia de Peniche, onde muitos preferiram um penhasco sobre o Atlântico, a continuar encarcerados. E celebrar a liberdade a cada ano, como uma coisa que nunca deixa de ser conquistada.
25 de Abril sempre foi motivo para ir ver um concerto. De Barroso, Godinho ou Zé Mário (outro dos meus heróis e autor do primeiro CD que tive na vida, obviamente oferecido pelo meu pai). Íamos a Guimarães ter com os amigos e assistir ao concerto da mais importante efeméride do ano. Amigos que também utilizam o meu adjectivo favorito: pidesco. De PIDE pois claro. E de tantos concertos de Abril na qualidade de plateia, passei, eu própria, nos últimos anos, a celebrar Abril no palco, na qualidade de eu própria.
25 de Abril sempre foi pretexto para pôr um cravo à lapela e descer a avenida da Liberdade, por entre o pólen dos plátanos na primavera. Sempre foi razão para subir ao Carmo e imaginar os tanques estacionados, Marcelo Caetano lá dentro, o povo a encher a praça de gente até não caber nem mais um cidadão eufórico e expectante, as floristas, os fotógrafos, a emoção. Sempre foi motivo de orgulho no país. Nessa capacidade de mudar tudo sem usar a guilhotina. Nessa vontade de começar de novo, como no poema de Sophia que tantas vezes declamo nos concertos. Uma casa limpa, um chão varrido, um tempo novo, sem mancha nem vício que sairia daquela madrugada tão esperada.
25 de Abril sempre foi sinónimo de liberdade sobretudo para as mulheres. Que não podiam votar até então. Que não podiam sair do país ou trabalhar sem autorização do pai ou do marido. E que, entretanto, conquistaram um lugar nas universidades, no espaço público, na vida activa, como seres empoderados e livres (política, sexual e simbolicamente). Mesmo que ainda haja muito trabalho pela frente, Abril fez mais pelas mulheres portuguesas do que é costume lembrar e celebrar. Sendo nossa responsabilidade continuar a fazer Abril acontecer até que a igualdade salarial, a partilha das responsabilidades domésticas e familiares e a erradicação da violência de género, entre outras conquistas, sejam concretizadas.
25 de Abril sempre foi uma das coisas portuguesas que mais interesse suscita nos amigos de outros países. Brasileiros, ibéricos, italianos, belgas. Todos percebem o milagre que foi terminar décadas de ditadura sem guerra, sem massacres, sem vinganças. Para ver chegar o comboio dos exilados, a libertação dos presos políticos, o regresso dos soldados. E o engraçado é que foi justamente numa celebração do 25 de Abril que percebi o alcance desse olhar externo e da singularidade da nossa história. Estava com dois amigos bascos, um catalão e um sardo no Rossio. O desfile acontecia. Vinham os sindicatos, os comunistas, os activistas LGBT, cidadãos anónimos. Todos com bandeiras e cravos vermelhos na mão. Até que chega a vez do exército desembocar na praça e todos os meus amigos olham para mim atónitos. Como assim os militares numa manif que celebra a liberdade, perguntavam. E eu sorri. Mas se foram eles que fizeram a revolução! Só em Portugal, pensaram todos (e eu também). Os megafones soavam: 25 de Abril sempre!