Chamava-se Justino Amadeu mas quando era pequeno a mãe não lhe chamava isso, claro, a menos que fosse para ralhar, normalmente era Tininho e o Tininho um dia foi para a escola e no primeiro dia a professora deu-lhe um balão de hélio que se mantinha pendurado de pernas para o ar e no fim do dia sentou-se no passeio à espera que a mãe o fosse buscar com o balão a apontar para o céu, e a mãe lá apareceu, ele disse mãe não gosto da escola, a mãe disse tem que ser Tininho, tem que ser porquê, porque depois tens que ir para o liceu e tens que ter boas notas para depois entrares para a faculdade e arranjares um bom trabalho, tens que aprender tudo o que a professora diz, liceu quando, espera, Tininho espera, e um dia o Tininho foi para o liceu e aí as pessoas já lhe chamavam Justino, Justino isto, Justino aquilo, e o Justino era alto a comparar com os outros, andava sempre meio curvado e gostava de uma rapariga que gostava de outro rapaz e não conseguia decorar os rios de Portugal nem as fórmulas químicas e um dia torceu o pé a saltar no trampolim na ginástica e disse Marta não gosto do liceu e ela disse tem que ser, tem que ser porquê, porque temos que ter boas notas para ir para a faculdade, estou farto, espera, espera e o Justino à espera e depois foi para a faculdade, Instituto Superior Técnico, que ficava na Asprela, perto de Paranhos, e saía de casa cedo e ficava a dormir no carro no parque de estacionamento (levava um cobertor) e o pessoal chamava-lhe Amadeu, puseram-lhe esse nome na praxe, ele junto da fonte da Praça dos Leões com um penico na cabeça e aquelas bestas a gritarem Amadeu, Amadeu, e ele que detestava esse nome, era o nome dum trisavô, que culpa tenho eu de ter tido um trisavô Amadeu, Amadeu é nome de trisavô e eu não sou trisavô, por este andar nem avô, e dizia para ele próprio espera, Tino, espera, tinha que esperar porque tinha que ser, era para arranjar trabalho, e não interessava, tinha que ser, e depois foi trabalhar para uma consultora, o primeiro trabalho foi inventariar mercadoria, tinha de ir para o terreno, e o que é que era o terreno, era uma arca frigorífica e o que é que era inventariar, era contar bacalhaus, e o Dr. Justino ali a contar bacalhaus, 46, 47, a certa altura os bacalhaus pareciam carneiros a saltar vedações e contar bacalhaus dava sono, a juntar ao frio e à fome porque já passava do meio-dia e aquilo era, afinal de contas, uma arca frigorífica e dava para ver a própria respiração e o Justino dizia em voz alta espera, Justino, espera, isto não vai ser a vida toda a contar bacalhaus, claro que não foi, um dia foi promovido e já não descia ao terreno, subiu um andar no prédio onde ficava a empresa e agora era mais de ficar ali pelo escritório, já ia no sexto café por dia e dizia espera, Justino, espera, na sala do economato entrava luz do sol, que batia no fato cinza-rato e saltava à vista um brilho que parecia o daqueles folhetos em papel couché que aquela rapariga entregava à porta da perfumaria do Loureshopping (aquela rapariga, aquela rapariga, espera, Justino, espera) e com esse brilho envernizado notava-se que o fato era do Jumbo, o Justino tinha alguma vergonha disso, como se alguém reparasse nessas coisas e por isso habituou-se a andar mais pela sombra e de repente o Dr. Justino já tinha um escritório próprio alguns andares acima, com uma placa com o nome, já faltava pouco para se reformar e dizia assim espera, Justino, espera, e um dia estava na sala do economato a tomar café e reparou no reflexo do vidro, com o sol a dar-lhe na cara, que estava amarelo e foi ao médico e o médico disse-lhe que era um adenocarcinoma no pâncreas e ele disse adeno quê, isso é mau, e o médico disse vamos esperar e ele foi para casa e sentou-se nas escadas do prédio como quem se senta no passeio com um balão de hélio vermelho pendurado de pernas para o ar à espera que a mãe o venha buscar e disse espera, Justino, espera, agora também já não deve faltar assim tanto.
(Crónica publicada na VISÃO 1305 de 8 de março)