A primeira vez que ouvi a sua voz fiquei estarrecida. “A carne mais barata do mercado é a carne negra”, cantava ela, num misto de ironia, renúncia e sublevação. Canção-baque, a cada frase, saída das profundezas da sua garganta como de uma ferida aberta, que dói a cada vogal estendida. Era Elza Soares.
Com o tempo, fui descobrindo mais canções e percebendo que aquela mulher-fraga cantava com a crueza da vida, na dose que a viveu.
Nasceu no “planeta fome” e, aos vinte um anos de idade, já era viúva, já tinha perdido dois filhos e já tinha outros cinco para criar. Ganhou e perdeu mais filhos depois disso. Um deles por sequestro. Viu morrer a mãe tragicamente e depois o amor da sua vida. O mesmo que lhe bateu durante anos. Trabalhou sempre muito e foi cantando, quando podia, para sobreviver (em todos os sentidos).
Ser mulher em grande parte do mundo é muito duro. Ser mulher negra, pior. Pobre, ainda por cima. Tê-la viva-da-silva, num palco, aos oitenta e seis anos, cantando com o mesmo poder subterrâneo, com a mesma majestade inabalável, é uma prova de Resistência (com erre grande). Sobretudo porque não foi um concerto de celebração de carreira, alimentado a êxitos do passado. Foi concerto de disco novo, muito aclamado, pelo risco, pela frescura, pela ousadia.
A Mulher do Fim do Mundo é o álbum que faz jus à sua particularidade. É belo e estranho como a flor do maracujá e tem a grande virtude de, tal como Elza, viver no limbo. É uma espécie de equilibrismo entre o grotesco e o sublime, entre a treva e a elevação, entre o lixo e o éter. Com noise e samba, choro e punk, tradição e experimentalismo.
No palco, aparece sentada num trono revestido a sacos de plástico, cantando como sempre cantou, com o microfone nas entranhas. Pede gritos, manda beijinhos e reafirma que quer “cantar até ao fim”, não perdendo a oportunidade de falar sobre a violência contra as mulheres, especialmente através do tema Maria da Vila Matilde. Incita à denúncia, divulga o número de telefone da APAV e pede que cantemos juntas “Cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim”. É sororidade, é ativismo, mas é também justiça poética, por todos os anos que viveu com Garrincha, sem poder acusá-lo publicamente de violência doméstica.
No Brasil, os números são assustadores, a cada sete minutos há uma denúncia de violência de género, a taxa de feminicídios é a quinta maior no mundo e, no caso dos homicídios de mulheres negras, o crescimento ultrapassou os 50% só na última década. Mas ainda mais terrível é a estatística da violência contra a população LGBT, em que o Brasil se destaca como o país do mundo onde mais se mata gays, lésbicas, crossdressers e transexuais, tendo registado sozinho 42% de todos os homicídios de pessoas trans no ano de 2015!
(E falando de outra diva) é por estas e por outras que para ser Liniker Barros é preciso muita coragem. Ser mulher (nascida em corpo de homem), negra e trans, orgulhosa no palco, afirmando a sua identidade, e celebrando, com música, todo o atrevimento, é honrar o legado de Elza, subir a fasquia das liberdades e “sambar na cara” do patriarcado graciosa e implacavelmente.
Mais um concerto inspirador, que demonstra a vitalidade da música brasileira e o nosso privilégio de partilhar a mesma língua e entender tudo o que é cantado, sem perder pitada na tradução. Liniker é uma jovem cantautora, que faz jus à tradição da música negra, sobretudo pela sua atitude-diva e pela festa de arromba que faz questão de atear. Mas, para lá da música, o que retiro do seu concerto na Casa da Música, tal como da lição de Elza Soares no Coliseu de Lisboa, é a carga política que vibra na sua (simples e concreta) existência, toda a coragem e exemplo de Resistência.
E é por isso que hoje subo ao palco paramentada de Elza, desejando que Nossa Senhora do Fim do Mundo nos dê força para a luta, até que viver na Terra seja menos hostil para as mulheres!