Quando chegava o verão, as pratas, os quadros, as coisas mais valiosas iam para casa dos meus avós, os sofás e as cadeiras era cobertos por lençóis
(os móveis também)
enrolavam os tapetes, tiravam as cortinas da janela, tapavam as estantes com plásticos, os passos ecoavam por toda a parte, esvaziavam-se as gavetas e a casa tornava-se uma coisa morta, estranha, hirta, onde me dava ideia de caminhar entre espectros. Não sei o que faziam aos fantasmas: deviam embrulhá-los em jornais e guardá-los na despensa. E então extraíam-nos daquele horror vazio e levavam-nos para a praia primeiro e para a Beira Alta depois, afastando-nos desses compartimentos ameaçadores e subitamente imensos. Tinha pena que algum ladrão lá entrasse na nossa ausência porque morreria de medo diante do nada, das janelas trancadas dos pregos solitários nas paredes, do vazio. Os talheres desapareciam também, em caixotes, as pratas, as loiças, tudo e movíamo-nos por ali em estrondos de botas de chumbo de escafandristas. Para nos salvarem de nos amortalharmos em tanta sombra os nossos pais transferiam-nos para a Pensão Central, por cima da farmácia, onde passávamos quinze dias a gelar, na Praia das Maçãs, sempre de pingo no nariz, de camisola e fato de banho, dentro de um crepúsculo eterno com imensas ondas exaltadas lá dentro. Vagos vultos de banheiros passavam com a lona dos toldos às costas enquanto nós tiritávamos ao acaso, com o nevoeiro a separar-nos uns dos outros, infelizes e sozinhos. Isto com a nossa mãe apenas. O pai vinha aos fins de semana certificar-se que continuávamos vivos e reunir-se ao nosso grupo de pequenos cadáveres de sandálias, tão perdidos como os companheiros do Capitão Scott no Pólo Norte. A mãe, de casacos de malha sobrepostos, resistia, heróica, àquela agonia cheia de termómetros e aspirinas, onde tudo o que devia ser seco se achava húmido, toalhas, roupas, sonhos, estados de espírito, sentimentos. Ao cabo de um mês a resistir corajosamente a pneumonias, com idas à farmácia contínuas à procura de pastilhas para a garganta e aspirinas para os arrepios, os nossos pais, falhado o seu projecto de um infanticídio colectivo, tiravam dali o que sobrava de nós e transportavam-nos, a fim de nos descongelar, para Nelas, mais ou menos a trinta quilómetros de Viseu, onde não existiam icebergues nem pirogas de esquimós a contornarem penedos. Nelas, nesse tempo, era uma vila pobre, frente à Serra da Estrela e a casa dos meus avós, continuada por uma vinha e cheia de castanheiros atrás e dos lados, tinha uma varanda com uma vista deslumbrante para a Serra. Era a casa da família da minha mãe, que nós preferíamos mil vezes aos Lobo Antunes porque eram mais inteligentes e mais doces, adorávamos a Avó a quem chamávamos Avó Querida e eu tinha
(continuo a ter, tio)
uma paixão pelo meu padrinho, João Maria, que aos oito ou nove anos me deu o padre António Vieira, aos dez uma assinatura das Nouvelles Literaires e alimentava com um sorriso sem ironia a minha certeza de já ser o melhor escritor do mundo. O meu tio compunha versos que ainda sei de cor, possuía uma excepcional beleza física, uma grande bondade e um enorme sentido de humor. Muito mais tarde, um pouco antes de ele morrer de uma forma estupidamente infeliz, fomos os dois a Nelas e durante esse fim de semana, no Hotel da Urgeiriça, senti-me tão contente com ele. Tínhamos muita coisa em comum, embora eu não lhe chegasse aos calcanhares: o modo de ver o mundo, o modo de sentir, a mesma dor íntima, secreta, misteriosa até, que nunca partilhámos com ninguém
(nem sequer um com o outro)
e que nos fazia sofrer tanto. Mas em Nelas a nossa felicidade era completa e o nosso pai
(a mãe:
– O vosso pai gosta mais da minha família do que da dele)
que se rendia por completo à nossa avó, nem piava para nos ralhar. Uma ocasião, teria eu dez anos se tanto, caiu-me do bolso uma caixa de fósforos e uma beata, ele levantou-se logo para mim, de penas todas no ar, escutei a Avó Querida
– Oh João
e o pai tornou a sentar-se e não me disse nada. A Avó Querida foi o Anjo Bom da nossa infância, o Anjo Bom da minha vida até à sua morte, nas vésperas da partida para a guerra, e que saudades tenho dos seus grandes olhos azuis. Se a nossa mãe começava a ralhar, a Avó Querida
– Na minha casa os meus netos só fazem o que querem
e nós sempre com o cuidado de não fazer fosse o que fosse que lhe desagradava. Nunca nos ralhou
(não precisava)
nunca se zangou conosco
(não precisava também)
e foi em Nelas que passámos os tempos mais felizes da nossa infância, recuperando das desgraças do inferno polar da Praia das Maçãs e sem nenhuma vontade de regressarmos a Lisboa, cheia de pinheiros, de amor, e da imensidade extraordinariamente bela da Serra. Eu, o João, o Pedro e o Miguel, e pergunto-me porque maldade horrível nos tiraram isto. Quer dizer não tiraram por completo. Neste momento, palavra de honra, estou lá.