Desde que integro o grupo de trabalho criado para discutir na especialidade a proposta de lei do Governo sobre a alteração à lei do tabaco, sinto, todos os dias, a linguagem farmacêutica (que quer ter o exclusivo dos produtos para deixar de fumar) a entrar na linguagem comum. É imenso o poder desse poder.
Mesmo tendo ouvido no grupo de trabalho gente que lida com a realidade das doenças oncológicas a apelar ao bom senso, no sentido de não se tratar um fumador (que pratica um ato lícito) abaixo de cão e de não se cometer o “crime” de equiparar os novos produtos de tabaco (cigarros sem combustão) e os cigarros eletrónicos aos cigarros normais, acontece o inverso do que se esperaria.
A tal da linguagem invade os media, as redes sociais e provoca uma espécie de discurso coletivo pouco preocupado com o Estado de direito, apático, servil e pronto a juntar-se numa cruzada contra quem ouse (mesmo que numa praia, sim, já estamos aí) a fumar um cigarro ou mesmo, imagine- -se, a usar aquilo que comprou para deixar de fumar, como um cigarro eletrónico, que não é um cigarro, mas como “parece” leva com a verborreia toda.
A proposta de uma Europa “livre de tabaco” excita os que por cá querem ver-se livres de quem os incomoda, sem pensarem por um segundo se têm eles próprios comportamentos incómodos para terceiros, pior, destruindo o fundamento da vivência coletiva do princípio da liberdade, esse que se traduz na impossibilidade de sermos todas e todos livres ao mesmo tempo sem algum incómodo recíproco. Mas escolheu-
-se o tabaco e tudo o que cheire ou pareça tabaco ou tenha a forma de um cigarro para despejar a fúria, que é falsa, porque mais não é do que o discurso produzido (com enorme eficácia) por quem nada teria contra cigarros sem combustão ou cigarros eletrónicos se os mesmos não escapassem à caixa registadora das farmácias. Acontece que de acordo com a diretiva europeia não são um medicamento, pelo que há muita vontade de os destruir com o discurso mentiroso e sem fundamento constitucional do “também fazem mal à saúde”, “não há estudos”, “princípio da precaução”, “há estudos que até dizem que fazem mal”, para que quem queira deixar de fumar volte às opções concedidas pela indústria farmacêutica.
O discurso faz escola e a proposta de lei diz que “fumar” passa a ser também o que não é fumar e depois equipara todos os produtos, o que significa que as restrições aplicadas ao fumo, nesta lei e em todas as que surjam no futuro, aplicam-se também aos cigarros sem combustão e aos cigarros eletrónicos.
Eis uma sociedade “exemplar”, na qual não fumas nem dás o exemplo com o que parece fumar, ainda que isso te esteja a salvar a vida e seja uma escolha individual tua. Eis uma sociedade em busca do “homem novo”, o “cidadão-padrão”, desenhado pelo Estado, sem espaço para as múltiplas escolhas que a vida se lhe oferece.
E depois disto? Racionamento do atendimento de obesos? Porque são culpados pela sua vida pouco saudável? Não? É que já foi feito, por exemplo, no Reino Unido. Afinal, diz-se que os fumadores custam fortunas ao SNS, pelo que é acabar com a espécie. E os obesos? E as pessoas que deliberadamente optam por comer gordura de manhã à noite e por não mexer uma palha? Chocante, não é? Pois.
E qual a eficácia deste impulso moralista e proibicionista?
Assim de repente estou a lembrar-me da lei seca.