Saímos do Porto montados numa Renault Traffic de 89 (emprestada) que dá pelo nome de Eugénia, e que foi devidamente transformada para caber na categoria de “autocaravana”. Mesa e sofá, lava-loiça e dois bicos de fogão, wc (apertadinho) e uma cama suspensa ao estilo “mezzanine”. Tudo o que é preciso para um fim de semana de roadtrip.
À hora do almoço chegámos a Ponte de Lima, bem a tempo de arranjar uma mesa com vista para o buliço da vila em sábado de Sol. Passeamos nas ruelas, à beira-rio e na ponte sobre o Lima até ao jardim, para verificar (pela enésima vez) que tudo é uma lindeza.
Preparados para seguir viagem, com a chave na ignição e a tralha cuidadosamente acondicionada para não chocalhar muito durante o percurso, e confirmamos preocupados que estávamos oficialmente sem bateria! (Um pisca deve ter ficado ligado).
Munida do meu optimismo sagitariano (de quem tem fé no zodíaco e em trevos de quatro folhas) não desanimei! Saí em busca de uma alma boa que tivesse daqueles cabos com boca de crocodilo e um veículo motorizado para servir de dador.
Aproximei-me de uma autocaravana estacionada a poucos metros, reluzente de tão imaculada, coroada com uma parabólica e recheada de todos os apetrechos que 2017 pode proporcionar e, meia dúzia de palavras depois, comprovo que a confiança é para manter e que a abundância não há de abandonar a tribo do copo-meio-cheio! Não só tinham os cabos necessários, como eram um casal de mecânicos reformados.
Eugénia de bateria carregada, lá fomos nós em direção à Galiza, devagarinho nas subidas, respeitando a velhice de um motor que rabuja violentamente acima dos 70 km/h, mas sem mais percalços ou hesitações.
O objectivo era chegar às termas antes do anoitecer. Três ou quatro tanques de pedra, à beira do rio, cheios por uma nascente de água termal, que fumega de tão quente, para ficar de molho até as estrelas encherem o céu. É que ali, não há outras luzes que façam concorrência. Só árvores e um rio sereno que faz um enorme espelho de água. E por isso até as mais tímidas estrelas se sentem à vontade para aparecer. Um incrível manto brilhante sobre a cabeça, tão amplo que queremos rasgar o campo de visão para o abraçar. E que nos lembra porque é que chamamos “láctea” à nossa galáxia.
Jantámos e dormimos por ali mesmo, depois da inevitável logística da sofisticada arte do caravanismo: fecha as cortinas, baixa a mesa, desdobra a cama, troca mais umas tralhas de sítio para haver espaço para esticar as pernas e voilá!
Ao amanhecer, outro banho termal, com a brisa fresca na cara e o corpo ainda preguiçoso… Uma tangerina e estamos prontos para a estrada! Percorridas as montanhas e superados os engarrafamentos bovinos, Pitões das Júnias foi o destino.
Atravessar a aldeia a pé, seguir até ao cemitério, descer pelo trilho até a um mosteiro do século XII abandonado no meio da floresta, passear ao pé do ribeiro com sua ponte de pedra, fazer novo trilho até à cascata, molhar os pés na levada, subir tudo de novo e, passadas duas horas, entrar num restaurante com uma fome primitiva e um escaldão no decote.
O que valeu foi a abençoada gastronomia transmontana, que até me faz comer carne como se fosse partidária. (Longe de nós ceder à tradicional massa-com-atum-de-parque-de-campismo, só por causa das circunstâncias)! O almoço foi delicioso, mas nada suplantou aquele que só pode ser o melhor pão de centeio do mundo, molhado num azeitinho caseiro que deve ter sido feito para ungir os querubins do céu.
A galope na Eugénia, o resto do percurso passou pelo castelo de Montalegre e pelos Pisões, para na manhã seguinte, já um pouco amassados por aqueles três dias de nomadismo, fazermos uma derradeira entrada triunfal no Palace de Vidago, com o motorzinho da Traffic a irromper toda aquela simetria à Wes Anderson e, num lampejo de chiqueza, tudo culminar no spa, com um belíssimo “Duche Vichy”.
(Só faltou a massagem da Eugénia).
(Crónica publicada na VISÃO 1256, de 30 de março de 2017)