A inauguração do busto do meu bisavô. Primos, primos porque já não há pais
(onde estão eles?)
e de súbito, intacta dentro de mim, a infância. O Quim Zé a passear-me de Vespa. A Ana Maria, uma das fadas boas da minha meninice. Ao contrário da praceta do busto, onde chovia, nas minhas recordações de criança nunca há chuva. Quando muito as trovoadas na Beira Alta e eu cheio de medo do barulho dos trovões na serra imensa. Da chuva não me lembro. A minha avó, alta de olhos azuis, por quem continuo a ter o mesmo grande amor e que me deu tanta ternura. Aqueles olhos azuis, meu Deus, a imensa saudade daqueles olhos azuis. Nunca se zangou comigo. A Avó Querida, como nós lhe chamávamos sempre, Avó Querida. Os olhos da minha mãe, garços. Gostava de a ver andar de bicicleta. O som da bomba de puxar água do poço. O vale com os comboios lá em baixo: o correio das seis, o de mercadorias, o rápido. A mesa de pingue-pongue no andar de baixo da casa. Um compartimento cheio de batatas. A minha tia, os meus tios. Bicicletas. O quintal do senhor abade, a empregada gorda
– Meninos, meninos
que nos dava uvas e cheirava tanto a refogado. É o que conservo dela, o cheiro a refogado e o sorriso. A família da minha mãe era alegre, o meu tio Joaquim levava-me no quadro quando ia ao centro da vila mandar cartas para a namorada. Magrinho, de óculos, para lá a descer, para cá a subir e eu a escutar-lhe a respiração cansada no cocuruto, a ver as mãos tremerem no guiador. Era a única pessoa que usava óculos e eu invejoso de não usar também. Era da maneira que crescia logo. Os castanheiros. Enterros de meninos, de caixão aberto e outros logo a seguir ao caixão, com asas de anjo, já tortas, enquanto o sino badalava a finados. Mendigos a atravessarem a vinha amparados a um pau, de barba, e nós a fugirmos com medo. Lagartixas. O lacrau que o meu pai matou com uma pedra. Duas lareiras na sala, uma em frente da outra. Chávenas de asa partida. Éramos muito felizes.
A inauguração do busto do meu bisavô. O Presidente da Câmara, a Vereadora da Cultura, um general. Assim, em bronze, o meu bisavô mandava ventarolas, cheio de condecorações e bigodes. Uns tantos curiosos, pouca gente no fundo. Em cada primo via as feições dos pais deles. Porque é que as pessoas morrem? A Avó Querida morreu já eu era médico, antes de ir para África. A minha mãe acariciava-a e beijava-a, eu fui beber uma imperial e comer tremoços à Estrela Brilhante. Em certos momentos apeteceu-me chorar mas não chorei, claro. Ao balcão, num banco alto. Depois paguei e fui-me embora. Estava lá o marido da irmã mais nova do meu pai, que dizia sempre
– Vocês
quando nos via, e, ao despedir-se
– Para citar Alexandre Dumas até amanhã.
Falava imenso por citações de Alexandre Dumas e Vítor Hugo. Por exemplo:
– Para citar Vítor Hugo as coisas são como são
de modo que, graças a ele, a literatura francesa não tinha segredos para mim. O célebre desabafo de Luís XIV
– Sinto a perna esquerda dormente
aprendi com ele:
– Para citar Luís XIV sinto a perna esquerda dormente.
E tirou-me as dúvidas. Por exemplo
– Do alto destas pirâmides quarenta séculos vos contemplam
não é de Napoleão, é de Carlos Magno visto que
– Para citar Carlos Magno do alto destas pirâmides quarenta séculos vos contemplam
porque Carlos Magno, não é verdade, quem se atreve a corrigi-lo? E a minha admiração por Carlos Magno cresceu. Se por acaso eu me atrevesse a insinuar o nome de Napoleão ele explicava logo que Napoleão não era uma pessoa, era uma marca de conhaque, o que aceitei ao vê-lo escrito no rótulo de uma garrafa gorda. Foi o cognac que invadiu Portugal em 1812 e a gente continuava a acabar com os franceses cálice a cálice. Havia amigos do meu pai que estalavam a língua a seguir a um gole
– Estupendo este Napoleão
que servia para os tornar mais faladores e mais corados. Nenhuma garrafa, que eu saiba, se preocupa com o alto das pirâmides.