Não é de hoje nem de ontem que a exceção se transformou em regra: a precariedade no ar que se respira e um contrato efetivo numa miragem.
Ao longo dos anos, este caminho foi-se sedimentando, sempre acompanhado pela lógica miserabilista de que “mais vale um estágio que nada, um falso recibo verde, um contrato a prazo, uma bolsa não chega para pagar as contas todas, mas sempre vai (mal) pagando algumas”. E tanto foi aplicável no público como no privado, sendo que o primeiro deveria, no mínimo, ser a boa referência ao segundo, e não disputar estratégias com o mesmo fim.
Esta realidade radica em duas lógicas centrais: a primeira é a de que um trabalhador com vínculo precário sai sempre mais barato, recebe um salário inferior, tem menos direitos, está no limbo e reivindica menos. A segunda é a de que existem funcionários públicos a mais, porque existem serviços públicos a mais, porque “devemos ter um Estado à dimensão das nossas possibilidades”.
Isto é, aqueles que não se conformam com a obrigação do Estado em assegurar a todos uma escola pública, um serviço nacional de saúde, a proteção social, o acesso à justiça e aos tribunais, ao emprego com direitos, encontram um pretexto sólido para degradar o funcionamento dos serviços públicos e assim justificar a sua privatização. “Por que raio deverá o Estado a gastar dinheiro em serviços que funcionam com intermináveis filas de espera e anos de atraso? Deixem o mercado funcionar”. Quem tem dinheiro que se avie no privado; quem não tem, engrosse essas filas de desespero. Nada mais errado e injusto.
Na verdade, o recurso à precariedade está muito para lá de opções economicistas na gestão: sustenta uma visão de sociedade construída, não nos alicerces da dignidade, mas da exploração do trabalho. Com a gravidade de que nos últimos anos, e em particular nos últimos do Governo Passos e Portas, o público competiu diretamente com o privado nas piores lógicas de precariedade. Entre 2010 e 2015, de acordo com dados do Boletim do Emprego Público, terão saído das administrações públicas (central, local e regional) cerca de 78 mil trabalhadores. Em resposta a esta sangria, o funcionamento dos serviços públicos tem sido assegurado por trabalhadores que, apesar de responderem a necessidades permanentes, não têm um vínculo efetivo, muitas vezes são contratados em regime de trabalho temporário ou de prestação de serviços em outsourcing, não estão vinculados aos serviços nem integrados numa carreira, nem têm acesso a direitos fundamentais como subsídio de férias e de Natal, proteção na doença e no desemprego. É injusto para os trabalhadores, prejudicial ao funcionamento dos serviços e contribui para a fragilidade do Estado.
No Orçamento do Estado de 2016, por proposta do PCP, foi aprovado o levantamento na Administração Pública e do Setor Empresarial do Estado das situações de “recurso a Contratos Emprego-Inserção, estágios, bolsas de investigação ou contratos de prestação de serviços”.
No Orçamento do Estado de 2017, foi aprovado que “na sequência do levantamento (…) o Governo apresenta à Assembleia da República até ao final do primeiro trimestre de 2017 um programa de regularização extraordinária dos vínculos precários na Administração Pública para as situações do pessoal que desempenhe funções que correspondam a necessidades permanentes dos serviços, com sujeição ao poder hierárquico, de disciplina ou direção e horário completo, sem o adequado vínculo jurídico”. Prevê ainda que, “para efeitos do preenchimento dos lugares (…) o Governo deve considerar critérios de seleção que valorizem a experiência profissional no desempenho das funções do lugar a preencher, valorizando especialmente a experiência de quem ocupou o respetivo posto de trabalho”, sendo que este processo deve “ter o seu início até 31 de outubro de 2017”.
O Relatório apresentado recentemente pelo Governo revela que existem muitos milhares de trabalhadores com vínculos precários na Administração Central, Autarquias e Setor Empresarial do Estado. Tal não será alheio ao facto do último processo de regularização de vínculos ter acontecido na década de 90 do século passado.
É de elementar justiça garantir que a um posto de trabalho permanente corresponda um vínculo efetivo e a integração de todos os que respondem a necessidades permanentes dos serviços públicos. A erradicação da precariedade e o emprego com direitos, no público e no privado, são condições indispensáveis ao desenvolvimento económico e social do País. O Estado deve ser uma referência para o conjunto da sociedade.
(Artigo publicado na VISÃO 1249, de 9 de fevereiro de 2017)