Não vale a pena perder palavras apelando a uma Europa “mais próxima dos cidadãos”, pedindo, sem olhar a realidade, um eterno “regresso aos valores fundadores” da União, esperando que os estrondos acordem os burocratas. O Brexit foi um estrondo, foi o resultado dos ingredientes que permitem a exploração de quem se sente excluído e que assim ouve a mensagem que não “nos” agrada como uma saída do “sistema” que os exclui. O Brexit foi também xenofobia e racismo. Isto é o sistema.
O estrondo durou um dia, a burocracia, a supremacia dos “pais fundadores” que se reúnem privativamente e a dedicação exclusiva ao tema das sanções (desiguais, contraproducentes e hipócritas) por incumprimento dos défices excessivos rapidamente encheram os telejornais. Isto é o sistema.
Os migrantes são alvo de política degradante, Calais não causa estrondo, a Turquia e a Hungria não causam estrondo. No dia em que escrevo, está a ser construído, nos subúrbios de Munique, um muro com quase quatro metros de altura para que os moradores possam estar separados dos refugiados. Isto é o sistema.
Trump ganhou as eleições e diz-se muito por aí que havia uma multidão descontente com o sistema. É verdade. Acontece que Trump é o sistema duplamente. É o sistema porque a sua vida foi feita graças a tudo o que repudiou durante a sua campanha e é o sistema porque encarna, nos EUA, em modos análogos, o que se passa na UE. Encarna o esquecimento dos mais desfavorecidos (independentemente do que diz no discurso oral), encarna o desprezo pelas instituições democráticas, encarna o racismo, a xenofobia e o sexismo, mesmo que muitos dos seus alvos tenham votado nele, não tenham votado em Hillary Clinton ou, como foi gritante, não tenham ido votar. Isto é o sistema.
Tal como no Brasil, país no qual após o impeachment golpista foi possível assistir-se à vitória de um bispo reacionário para a Prefeitura do Rio de Janeiro, nos EUA, o terreno fértil para a vitória do sistema mantém-se: da exploração ideológica extremista, que resulta de desigualdades na distribuição de rendimentos, ao racismo, à homofobia ou ao sexismo (estes últimos fenómenos com autonomia própria do fator económico). O sexismo é evidente e a sua não-
-interiorização no discurso que por aí vai é prova disso. Fala-se em “falta de carisma”, a propósito de Hillary Clinton. Uma ova. Hillary Clinton, precisamente por ter uma carreira de décadas, tinha de provar o impossível por ser mulher. Ela era “suspeita” por ser mulher. Não tinha “carisma”, essa coisa que só existe nos homens. E homens e mulheres, pobres e não pobres, brancos e negros, não perceberam que o lado emocional da campanha americana que os deveria levar a sair de casa para ir votar residia precisamente na esperança concreta de se fazer história. Isto é o sistema.
Deste lado, espera-se que Trump não vá tão longe como disse que iria. Deste lado, abrindo apenas um dos olhos, fala-se na perda do peso estratégico da Europa, uma vez que os EUA são a sua força efetiva. Deste lado, fala-se de Putin, dos equilíbrios geoestratégicos que um magnata faz tremer. É só disto que as caras das instituições europeias falam. Isto é o sistema.
Entretanto, deste lado, as luzes continuam a iluminar o que convém e a tapar o que envergonha (imigração e migrantes), Marine Le Pen, que deu os americanos por libertados, prepara-se para as eleições de 2017, na Holanda, nas eleições do próximo ano, esperamos o pior, a Itália está como está, o candidato destacado nas eleições presidenciais austríacas é Norbert Hofer, de extrema-direita. O terreno do medo e do desprezo pelo outro está cá. Isto é o sistema.
Ou foi-se transformando no sistema. Temos o dever de não normalizar todo este sistema. É um imperativo democrático, de combate e ideológico. E esse combate nunca pode ser opaco.
(Artigo publicado na VISÃO 1238, de 24 de novembro)