Não li o livro das cartas da guerra por duas razões: a primeira porque não me eram destinadas e portanto não tinha que ir lá pôr o nariz; a segunda porque como dizia o meu amigo KK não gosto de me meter nos meus assuntos privados. Também não vi o filme porque já assisto a cinema que chegue quando, em certas noites, a angústia de África me visita. Mas lembro-me que havia muita coisa de que não podia falar por causa da censura militar e da censura da polícia política. Então tentava dizer e passar coisas de uma maneira que pensava escapar aos olhos, bastante estúpidos aliás, da excelente rapaziada que nos vigiava a correspondência. Mandei, por exemplo, uma fotografia minha com um oficial preto, na esperança que se percebesse que era um Katanguês que combatia ao nosso lado, porque o regime lhes prometera ajuda a fim de recuperarem o Katanga que tentava, e chegou a proclamá-la, a independência em relação ao Congo. Não eram meigos na mata, para a qual saíam de lenço vermelho ao pescoço, e matavam selvaticamente tudo o que mexia. Escrevia, por exemplo, “para a semana não estou” o que significava operações que não era permitido mencionar. Enviei Manuais de Alfabetização, apanhados ao MPLA, na esperança que em Portugal percebessem o que era de facto aquele movimento, para além do que a imbecil propaganda do Estado Novo buzinava. Quando, na Baixa do Cassanje, houve uma grande epidemia de cólera andei dias e dias de unimogue, com o meu furriel enfermeiro, um rádio e dois ou três seguranças, de aldeia em aldeia pela mata, a vacinar, a tratar. Agora vão equipas médicas. Nessa altura ia eu sozinho. Disso tenho a certeza que falei também, ou seja queria que percebessem aqui a alta ajuda que prestávamos: Um médicozito perdido na mata, um único, e era um pau. Esperava que a Zé propagandeasse isto. Não sei se o fez. Muitos aerogramas levavam recados assim, gritando em surdina acerca daquele “erro formidável”, como lhe chamava o meu querido camarada Ernesto Melo Antunes, com quem servi e a quem vi os olhos cheios de lágrimas quando nos morreu o primeiro rapaz:
– Tinha jurado que os levava a todos
e impunha-nos uma disciplina férrea porque
– Assim haverá menos baixas
mas houve, Ernesto, infelizmente houve. Antes de Angola fui sempre um cobarde. Por medo não participei das revoltas estudantis, por medo mantive-me sempre à margem, convencido que era melhor sair de cabeça baixa do que com os pés para a frente. A minha falta de coragem e de dignidade fazia com que sentisse repulsa por mim mesmo. E a vergonha e o nojo pelo meu comportamento eram tantos que jurei portar- -me como um homem em África. Queria ganhar o meu respeito. Aquilo de que mais me orgulho não é o facto, por exemplo, de ser um grande escritor. Aquilo de que mais me orgulho na vida é ter ganho o amor dos meus soldados, eles que só apreciavam aqueles que definiam como tipos duros. Acho que não mereço a etiqueta porque como tinha cu, tinha medo. Mas lá ia. Lá fui. Vi, por exemplo, um oficial borrar-se de pânico debaixo de uma mercedes
(eu pensava que borrar-se de pânico fosse uma expressão figurada)
durante um ataque. Foi um espectáculo ignóbil, como continuo a ver o oficial que o tirou de lá
– Meu cabrão, meu cabrão
aos pontapés e aos murros. Não era um homem: era uma mistura de ranho, merda, lágrimas, gemidos e súplicas nojentas, todo dobrado sobre si mesmo como um bicho da conta. Quando nos morreu um rapaz com um tiro na cabeça
(isto passou-se na Companhia 12 ou na 14)
mandei que o deitassem na minha cama, garantindo que ele estava só a dormir
– Estava só a dormir, está só a dormir
e viram-se gregos para o enfiarem num dos caixões da arrecadação. No meio desta loucura
(porque o era)
recebi coisas preciosas: o amor de um irmão, o Ernesto, inteligente, lúcido, sereno, bom e de um valor exemplar, que uma ocasião me escreveu uma coisa que ainda hoje me ajuda. Começava com um excerto de Platão:
“– De que te serve, Sócrates, aprender a tocar lira visto que vais morrer?
– A tocar lira antes de morrer”
de modo que eu escrevia quase todos os dias. E mostrava–lhe. Não era nada bom mas mostrava-lhe.
E o Ernesto, talvez por piedade
(não podia ser senão piedade)
achava que eu ia mudar a Literatura. A minha forma de mudar era deitar tudo fora. E recomeçar com acompanhamento de trás. Na véspera de morrer, anos depois, disse-me
– Acordei hoje todo molhado. Não me deixes morrer sem dignidade
ele que a tinha, muito maior do que aquela que alguma vez terei. Só não te perdoo ganhares-me nove em cada dez jogos de xadrez. E, sabes, ainda hoje me sinto órfão de ti. Há uma fotografia de nós dois a rirmo-nos: é essa que guardo no coração. Disso e de ir atrás do teu caixão com a Catarina e a Joana, ou seja com uma filha tua em cada braço.
Portanto, quando a guerra me vem rasgar a noite, apareces- -me sempre.
“ – De que te serve, Sócrates, aprender a tocar lira visto que vais morrer?
– A tocar lira antes de morrer”
e estamos de novo a jogar xadrez em tua casa, sob o quadro de Utrillo que Chirac te deu, a bebermos o chá que o Bichezas, o ordenança da Messe
(chamar messe a uma barraca é boa)
nos trazia. Outra vez juntos. Para sempre, porque a amizade de dois homens, tal como o herpes, é para toda a vida. É que os homens, quando de facto o são, estão condenados a entenderem-se. Meu camarada, meu companheiro, meu mano para sempre.