De novo a escrever crónicas. Normalmente, antes de começar um livro, faço uma série de prosas para ter os primeiros tempos para ele, sem necessidade de o interromper constantemente, todos os meses, para redigir estas coisinhas despretensiosas a que cada vez dou menos importância. Nunca mais as publicarei em volume e não consinto que sejam reeditadas as coleções delas que porventura ainda circulem por aí. Faço-as para não andar de esplanada em esplanada a vender pensos rápidos ou a arrumar carros no Jardim do Príncipe Real. Assim, recebo a moedinha ao fim do mês que vai dando, com dificuldade, para a bucha e para o pó e me mantêm, magrinho, à tona dos dias. Esta revista lá me vai ajudando a aguentar: o problema é que cada vez tenho menos veias: por enquanto há uma ou duas na parte de baixo da língua e quando a língua ficar cortiça onde é que eu espeto? Dormir ainda se dorme por aí, enquanto houver degraus e um pedaço de manta há cama, mas existem cada vez mais polícias a enxotarem-me com o joelho
– Andor, andor
quando acabo de adormecer num prédio abandonado de Campolide, o polícia
– Cámone yes trabalhar aquece
de joelho mais activo contra a minha barriga e eu, estremunhado, a olhar as estrelas entre dois telhados e a namorar uns andaimes e um entulho simpáticos onde um cão vadio, palavra de honra, me sorri, pronto a dividir comigo as pulgas e a sarna um do outro e a iniciar uma cumplicidade fraternal. O problema do cão é que vai obrigar- -me a vasculhar nos caixotes à procura de ossos enquanto ele espera, comovido, um resto de tutano, ferrando os dentes que ainda lhe sobejam no que ele imagina uma sobra de carninha que quase não há e da qual, se houvesse, eu aproveitaria os últimos fiapos. Por aqui se depreende que escrever crónicas é um trabalho não apenas penoso mas terrível de dificuldade e persistência. Se, por exemplo, eu falasse de política seria canja mas não posso porque a minha mãe ensinou os filhos a não se sujarem, era uma mulher honesta e detestava porcarias. O meu amigo George Steiner contava-me que em Cambridge, onde ele ensinava, nenhum bom aluno seguia uma carreira política ou entrava na banca, no medo que os polícias ingleses os empurrassem com o joelho
– Andor andor
para longe do sítio onde estão as pessoas, de maneira que aquilo que me resta é escrever estas pecinhas e pronto. Fazê-las o mais depressa possível e regressar ao livro. Devo estar zangado: tenho tanto trabalho pela frente. E devo ser mal agradecido: na Visão trataram-me sempre bem, lembro- -me da extrema honestidade e correção de Carlos Cáceres Monteiro e dos directores que se lhe seguiram, da amável elegância de Francisco Pinto Balsemão, e do que lhe devo em generosidade e simpatia. É um homem de quem gosto e que respeito muito, um homem que, na minha modesta opinião, e estou a ser completamente sincero, mudou o jornalismo em Portugal numa época em que era muito difícil fazê-lo, criando do nada, inovadoramente, sem concessões, uma nova forma de informar, formar, criticar, com uma absoluta honestidade a que os portugueses deviam estar gratos. Que eu saiba ainda não se lhe fez a homenagem que merece, ainda não se reconheceu, publicamente, a imensa importância do seu trabalho. Porquê? Ele é, sem dúvida, o fundador do jornalismo moderno em Portugal. E é tolerante. E é sério. E é honesto. Tenho por ele, e nunca lho disse por estupidez minha, uma admiração profunda.
Onde é que eu ia? Ia que isto das crónicas me tira tempo. Muito tempo. Que me obriga a mudar o ritmo da prosa, que me vejo grego para voltar ao livro depois. Isso custa- -me e faz-me sentir culpado. Nasci para mudar a literatura portuguesa. Tenho consciência do que os meus livros valem. Tenho consciência que, depois de mim, não se pode voltar a escrever da mesma maneira. Sei que a minha obra vai ficar, o que de pouco me serve porque qualquer dia morro. Deixo papéis. Cervantes escreveu que não se pode nada contra o Céu sobretudo se está a chover. Papéis apenas. Posso dizer, como Bocage
– Isto é meu isto não morre
mas de que servirá isso? Claro que me orgulho do que fiz. Trabalhei como um mouro. Rasguei, durante anos, quilos e quilos de papel a repetir para mim mesmo
– Ainda não é isto, ainda não é isto
e, depois de publicado, a hostilidade da crítica e dessas pessoas que nada sabem de literatura e portanto nada perceberam do que eu estava a fazer, para além do primeiro original ter recebido, durante dois anos, negas do todas as editoras que o receberam. Mas era natural e eu compreendia. Estava tão seguro do valor do meu trabalho e de que o tempo jogava a meu favor. E jogou. E ganhei. Que um livro não se escreve assim. A prova que se escreve assim é que eu o faço. Não havendo novidade, como dizia um alentejano sem pernas, faltam-me dois livros e meio. Espero acabar em 2020, e tudo ficará redondo e pronto. Ou seja, lembrando-me de Manuel Bandeira, a casa pronta e cada coisa no seu lugar.