Há tanta coisa em que não mudei nunca e continuo a ser o menino que fui. Por exemplo na minha relação com Deus. Amuo com Ele, zango-me, afasto- -me, finjo que não existe e depois, claro, vai-me passando, reaproximo-me de banda como se não desse pela Sua presença, falo com todos menos com Ele, não o cumprimento, não me despeço, ignoro-O e acabo por me sentar nos Seus joelhos como se a cadeira estivesse vazia, como se ninguém a ocupasse, o que é capaz de O fazer sorrir no caso de não Lhe pesar muito porque, ao longo dos anos, fui aumentando de tamanho e ganhando uns quilos. Deus, valha a verdade, também se alterou. Deixou de ser o velho de barbaças e túnica da catequese, que calçava sandálias
(sempre detestei adultos de sandálias e os seus pés enormes, feiíssimos, cheios de dedos, mais de uma dúzia em cada um, e digo mais de uma dúzia em cada um porque a meio da soma me perdia)
danado para afogar egípcios e arrasar cidades, transformar criaturas em estátuas de sal e matar primogénitos. Como eu era primogénito, palavra esquisita mas que me caía bem, andava a pau com a escrita e, por prudência, ia-me desviando de criaturas barbudas antes que puxassem de um canivete das calças
(na feira de Nelas havia uns enormes, com o emblema do Benfica)
e me cortassem a goela ao som do hino das Papoilas Saltitantes, embora os benfiquistas sejam, por definição, pessoas unhacas mas nunca fiando que no melhor pano cai a nódoa. À medida que eu crescia Deus ia ficando mais calmo visto que a idade pacifica toda a gente, e os Seus caprichos cruéis diminuíam um a um, ao mesmo tempo que nos afastávamos um bocado um do outro. Deixei de O ver com barba e sandálias de turista alemão, de aspecto vagamente pouco limpo e triângulo atrás da cabeça, a mirar-me, severo, da alcatifa de uma nuvem. Os anos foram passando e deixei de pensar muito n’Ele. Era um assunto acerca do qual não falava e como lera em Whitman
Gosto dos animais porque não discutem a existência de Deus
não o mencionava sequer. Lembrava-me também da resposta de Voltaire ao perguntarem-lhe qual era a sua relação com Deus
– Cumprimentamo-nos mas não nos falamos
e ia-lhe seguindo o exemplo: um aceno de cabeça e andor ou então, se o descobria ao longe, mudava de passeio, dado que hesitava entre o curvar do pescoço num
– Bom dia
vago e o adeusinho maricas, a abrir e a fechar a mão numa época em que procurava afirmar a virilidade que não tinha: a minha voz não engrossara ainda e não me nascera, por enquanto, nem um pêlo no queixo. Se por acaso atendia o telefone, nos meus pais, tratavam-me por
– Minha senhora
comigo capaz de afogar o egípcio ou a egípcia que me alterava o sexo, eu que vivia apaixonado pelas atrizes de cinema que acompanhavam, em fato de banho, as embalagens de pastilhas elásticas de balão. Interessei-me por várias, que me correspondiam sorrindo, de queixo sobre peitos generosos
(logo dois)
acompanhando-me, acho que aprovadoras e risonhas, na intimidade culpada dos meus prazeres solitários. Até que, já crescido, na Faculdade, na tropa, na dificuldade de ser, depois da tropa, Deus foi regressando lentamente, como uma espécie de comichão num ponto impreciso da alma. E impressionava-me o que lia acerca d’Ele nos escritos dos grandes físicos e grandes matemáticos do século vinte, através dos quais tentava compreender melhor o mundo. Quase todos falavam de Deus, quase todos eram profundamente crentes, quase todos afirmavam que a certeza da Sua existência os ajudara nas suas descobertas e na sua vida. Uma frase de Einstein ficou-me gravada no miolo, em que ele afirmava ter pena que os filhos imaginassem Deus como um vertebrado gasoso, mais ou menos aparentado com o senhor antigo e terrível do catecismo. Achei-me um idiota perfeito porque o tal vertebrado gasoso era a imagem que eu guardava da minha vida na igreja e dos meus tempos de menino do coro. O Deus de Bohr, de Eisenberg, de Poincaré era de quem eu precisava para dar um sentido à minha existência. Mais ou menos por essa época, ou uns tempos depois, assisti à última entrevista do escritor inglês Evelyne Waugh, que o meu pai apreciava muito. O jornalista perguntou-lhe
– O que espera dos seus leitores no futuro?
e Evelyne Waugh respondeu imediatamente
– Que rezem pela minha alma pecadora.
Há dias tive de fazer um exame aos pulmões. Dois ou três anos antes haviam-me aparecido dois cancros, um em cada pulmão
(parece que gosto das coisas em grande, sou um escritor ambicioso)
e, dez anos atrás, um cancro do cólon. Eu não queria morrer. Existiam livros em mim com vontade de serem escritos, não acabei ainda a minha obra que, de qualquer maneira, mesmo que eu dure trezentos anos, ficará incompleta. Portanto, resumindo, estava cagadinho de medo, tentando não o mostrar a ninguém. O medo que a gente tem dos médicos nessas alturas, o modo como os olhamos antes deles começarem a falar, tentando decifrar a sentença nas caras caladas.
– O horror
como dizia Conrad no “Coração das Trevas”
– O horror
e eu a compreender finalmente, por inteiro, as expressões dos meus doentes antes de começar a explicar-lhes o que se passava. A Medicina não é apenas a arte de tratar é, sobretudo, um ofício de amor e partilha. O meu pai, para voltar a ele uma última vez, era extremamente terno com os doentes, o meu irmão João e o meu irmão Nuno, cada qual ao seu modo, tenho a certeza que também. Na véspera do exame telefonei ao meu querido amigo Frei Bento Domingues, que tanto amo e admiro, falando-lhe que ia fazer esse exame e pedindo-lhe que rezasse pela minha alma pecadora. Deram-me uns copos a beber, meteram-me coisas nas veias, estenderam-me numa maca com um aparelho em torno, e esconderam-se atrás de uma janela por causa das radiações. Uma voz, encafuada num microfone, ordenava
– Encha o peito de ar
ordenava
– Respire normalmente
tornava a ordenar
– Encha o peito de ar
tornava a ordenar
– Respire normalmente
depois ajudaram-me a levantar e a médica, que foi extraordinária de doçura comigo, apareceu a dizer-me
– Está tudo bem
ou seja as palavras mais agradáveis que se podem ouvir neste mundo e eu tonto, admirado, sem reação, incapaz de reentrar no mundo dos vivos.
– Está tudo bem
e, meu Deus, por estranho que pareça não me vinha alegria alguma, vinha-me uma espécie de indiferença apática. Pensei, ou seja mal consegui pensar
– Vou ter tempo
e saí de lá como um autómato. Ainda me sinto meio autómato hoje, meio perdido, calado, vazio. Telefonei ao Bento, pedi-lhe
– Não te esqueças de mim nas tuas orações
ele respondeu-me, quase num grito
– Nunca
e foi uma das mais lindas declarações de amor que alguma vez escutei. Uma ocasião disse-me:
– Não vou aos cemitérios porque não está lá ninguém.
E é verdade, não está. Nem sequer eu um dia porque me hão-de pôr de certeza nos Jerónimos, entre Camões e Vasco da Gama, com quem formarei um novo Trio Odemira. Deus há-de gostar das nossas cantorias e já o imagino a bater o ritmo com o pé. Sem sandália, claro.