Bowie morreu. Inesperadamente. Poucos dias depois de lançar um novo disco. E quando o mundo se entusiasmava, uma vez mais, com a inesgotável vitalidade da sua alma criativa, ele (como sempre) surpreendeu toda a gente e foi embora. O mundo ficou em choque, perguntando-se: como é que não percebemos que este disco era uma despedida?
Muita gente chorou a morte de Bowie, como quem chora a morte de um amigo muito próximo. Gente inconsolável, que acompanhou sempre a sua carreira, referindo-se a ele com uma familiaridade doméstica e, ao mesmo tempo, com uma adoração quase mística. E apesar de eu não ser um desses fãs devotos, senti-lhes especialmente o luto.
Impressiona ver os vídeos dos novos temas de Bowie, pensar que ele criou a partir do sofrimento físico de uma doença prolongada e da esmagadora proximidade do fim. Pensar que ele teve forças para compor um disco inteiro no ocaso da vida, reforça a minha convicção de que a criação torna tudo mais suportável e é, de facto, uma infalível alquimia. Criamos para transformar o pior que nos acontece no melhor que podemos dar ao mundo. Uma espécie de máquina que transforma merda em ouro.
Ao longo da vida aprendemos (à força) a viver com a omnipresença da morte e, na consciência da sua inevitabilidade, definimos a nossa condição existencial, distinguimo-nos dos animais, construímos necessidades espirituais, narrativas que possam dar sentido a tamanha contingência. Mas quando ela chega (ainda) mais perto, relembramos a nossa fragilidade, a sua iminência torna-se mais real e fica mais difícil viver com o seu peso.
Quando a morte passa por perto ensopa tudo, com a sua água gelada e um cheiro enjoativo a flores meladas, que demora muito tempo a desaparecer.
Pelo menos no caso de artistas como Bowie, temos a imortalidade da obra para operar o milagre da ressurreição infinita. De cada vez que uma música passa na rádio, por cada vez que vemos um videoclip, por todo o material inédito que aparece postumamente, renascem. É mais uma magia da criação. Uma espécie de máquina que transforma homens comuns em mitos.
Há uns anos, em conversa, uma grande amiga, que perdeu a mãe na primeira infância, dizia-me que gostava de ter mais fotos da mãe e algumas filmagens ou gravações, para poder saber como se mexia, como ria, como falava, como soava a sua voz. Creio que uma das vantagens de vivermos no tempo mais documentado de sempre, em que todos se fotografam permanentemente, em que tudo é filmado, gravado e arquivado (até ao ponto de arriscar a privacidade de cada um), deve ser, precisamente, a possibilidade de conservar um pouco das pessoas que vão partindo. De podermos, como os artistas, ser revisitados no futuro, por quem nos lembra, ou por quem nos quer conhecer melhor do que teve oportunidade. De podermos avivar a memória, quando se aproxima o clássico pavor, de um dia já não nos lembrarmos de como era o rosto, ou como soava a voz.
Bowie morreu, mas percebo, enquanto escrevo estas linhas, que a atualidade do tema foi apenas um pretexto que encontrei para escrever sobre a morte. Acho que falamos muito pouco dela, individual e coletivamente. Como se não quiséssemos dar-lhe ideias. Como se assim nos lembrássemos menos dela. Como se a fôssemos adiando. Acho que não sabemos o que nos havemos de dizer, como não sabemos o que dizer quando chegamos perto do moribundo ou do enlutado.
A sua esmagadora dimensão faz das palavras insuficientes. Não sabemos pronunciá-la. Temos medo da sua água fria e evitamos o enjoativo cheiro a flores meladas que a acompanha. O humor ajuda. Dizem que a fé também. Mas, de todas as (poucas) ferramentas que temos para lidar com ela, a criação é a mais eficaz. Primeiro, pela catarse. Mas, sobretudo, porque funciona como uma máquina que transforma o medo em arte. Uma máquina que, com sorte, nos transformará, a nós, num desses artistas, como Bowie (que, por ela, durarão para sempre).