O homem com 40 anos incertos deixou Tete ainda criança e num machibombo por estrada esburacada chegou à cidade que nada lhe oferece. Não estudou. Traz a camisola branca negra do carvão que vende aos habitantes do antigo hotel e os sapatos rotos dos quilómetros entre o edifício e a casa onde a esposa e o filho esperam os 80 meticais diários, necessários para comer. 1,15 euros.
Eu vejo uma jovem rapariga negra. Às seis da manhã, enquanto o sol se ergue, entra no machibombo para uma hora de viagem desde Munhava até Macuti, deixando os dois filhos com a mãe. Eu vejo uma rapariga de 27 anos que não escolheu o marido. Escolheram-no os pais. Mas a rapariga sente-se com sorte, porque o marido não é como os outros maridos moçambicanos. Não lhe bate. Não a obriga a trabalhar quando está doente. Ela que vem lá de longe, entalada numa carrinha de gente pobre e suada, para limpar apartamentos erguidos no areal.
O homem e a rapariga, separados por não muitos quilómetros, já não questionam porque é que a miséria persegue constantemente os negros. Não perguntam o que é que nas artimanhas da História se esconde para que a sua nação seja tão castigada pelos tentáculos da pobreza. Aceitaram a vida como a vida lhes é: dura, limitada.
Nem toda a História escorre boca a boca das bocas dos que não a aprenderam. Este homem traz na ponta da língua as grandes cidades portuguesas. Estuda o mapa de Portugal como se estudam os sonhos. Mas saberão, este homem e esta rapariga, que o país a que chamam seu se vergou após o sangue derramado de Ngungunhane pelas mãos de Portugal? Saberão eles que desse sangue nasceram 470 anos de colonização, que os corpos foram levados em embarcações, que o ouro foi cortado da terra e transportado para longe? Saberão eles que a colonização e a guerra civil lhes esventrou o corpo da nação e que jamais o coseram?
E, no entanto, este homem e esta rapariga sabem mais para lá da História. Eles sabem que onde há trabalho forçado, sujo, perigoso, mal pago, existem negros. Eles sabem que dentro de quatro dias (25 de Junho) se comemoram 44 anos de independência. Mas eles sabem que o fardo do colonialismo ainda lhes pesa nos ossos da educação, nos ossos da economia, nos ossos da igualdade. Eles sabem que o fardo do colonialismo pesa no esqueleto do país, curvando-o.
É Inverno de 2019. O homem continua a escavar. A rapariga continua a limpar apartamentos que apenas em sonhos ousa poder habitar. Separados por quilómetros, nos olhos negros de ambos deverá balançar a questão: quão livre está afinal Moçambique dos que outrora lhe sugou a liberdade?
Esta é parte da história do homem e da rapariga. Está é parte da história de porque não podemos esperar. É necessário. É urgente mudar.
Nota: machibombo – autocarro ou carrinha que transporta pessoas