Creio já ter comentado nestas minhas crónicas que estive em lista de espera para conseguir uma vaga na creche do meu filho mais velho e que tinha feito os contactos ainda estava grávida. Tal deveria ter servido de alerta premonitório, mas a fase seguinte, a tal pré-primária ou prekinder, como lhe chamam por cá, parecia algo distante. Março de 2019.
O nosso pediatra disse-nos numa ocasião que, infelizmente, o Chile era ainda um país muito classista, estratificado do ponto de vista social e que pela maternidade onde uma criança nascia se podia prever, com alguma exatidão, como iria ser o seu percurso ao longo dos próximos 20 anos. A vida traçada do berço até à universidade… quando estas são as regras do jogo, a pressão aumenta. E foi assim como, chegados a Março de 2018, começaram os dois meses mais traumáticos destes nossos cinco anos de vida chilensis.
Primeiro conselho: não basta candidatar-se a uma escola. Devemos escolher pelo menos três, para garantir que ao menos a criança é aceite numa delas. Ouvem-se histórias de terror de crianças que não entram em nenhuma e que repetem a creche à espera de entrar no ano seguinte… Os putos podem chumbar na creche?! Capitalizando neste temor dos pais, alguns colégios começaram a criar o nível “playgroup”, uma espécie de creche dentro do colégio para assim aliciar os pais com um processo de seleção mais suave e a garantia de uma vaga a futuro no temido prekinder.
No Chile, há uma divisão básica no momento da escolha das escolas que tem que ver fundamentalmente com a filosofia de ensino que se pretende. Religioso ou laico? Por arrastre, a segunda pergunta é: segregado ou misto? E depois para os mais progressistas: bilingue? Para a tribo do “laico, misto, bilingue” as escolhas começam a reduzir-se e se quisermos ser realmente exigentes com o “bilingue”, não apenas um colégio chileno onde se dão muuuiitas aulas de inglês; se estivermos a falar de bilinguismo como a transmissão dos valores de uma determinada cultura, para além da aprendizagem do idioma, bom, então estamos a falar de uns quatro ou cinco colégios em Santiago. Pode parecer uma exigência meio snob, mas nós vemo-nos uma família culturalmente diversa, entre pais e filhos viajamos com passaportes de nacionalidades diferentes, vivemos num país que não é o nosso, mas que é o deles. Quando me perguntam qual é a língua materna dos meus filhos, fico na dúvida. Para a nossa família, a diversidade cultural tornou-se tão importante como os idiomas ou as matemáticas.
Até parece que somos nós a escolher a escola, a realidade pode não ser bem assim…
Nas várias sessões informativas começamos a perceber que os números podem ser bem desanimadores, em média, de um total de 150 vagas, somente 30, por vezes 10 vagas vão para as famílias novas. Existe um sistema de prioridades, miúdos com irmãos na escola, o playgroup quando existe, filhos de ex-alunos, filhos de funcionários e lá no fim da lista, as famílias novas. Nós! Espreitamos pelo rabinho do olho e no anfiteatro estão presentes pais suficientes para umas 300 candidaturas. A realidade, é que para tão poucas vagas e tão alta procura, são as escolas quem realmente escolhe. Entrevistam os pais e avaliam as crianças.
São miúdos de três anos a três anos e meio que estão a ser avaliados para o próximo ano letivo. Pelas instruções que as escolas dão relativamente aos dias das provas, coisas do tipo: não lhes minta dizendo que vai a uma festa de anos, não os mande doentes e medicados… deve haver de tudo. Vê-se de tudo. Miúdos a chorar, que não querem entrar na sala, ou que acabam por ser mandados embora a meio da prova. A cara de angústia desses pais. A cara de angústia de todos os pais enquanto ficamos ali no pátio durante aquela hora e meia das provas a olhar uns para os outros. Não conseguimos que o nosso filho nos contasse muitos detalhes do que raio faziam nessas avaliações. Brincaram, suponho, numa havia um comboio de madeira no meio da sala, noutra contaram-lhe uma história de que gostou muito. Para ele, tudo isto foi como se o tivessem convidado para ir brincar a uma escola nova com brinquedos novos. Foi isso, de facto, o que lhe contámos, que tínhamos ouvido que uma escola de meninos crescidos estava a convidar meninos de outras escolas a irem lá brincar no pátio deles. E como ele gostou, depois dissemos que íamos procurar mais escolas que estivessem também a convidar para ir lá brincar. Mais do que saber formas geométricas ou identificar as cores, que é o que muitos pensam que devem preparar os filhos para este tipo de provas (e há quem contrate tutores extra para o efeito!!), pareceu-me que o que as escolas estão a avaliar são coisas como a ansiedade de separação, seguir instruções, capacidade de prestar atenção, autonomia.
Para mim, o maior choque cultural foi, de facto, perceber que para os pais chilenos o que se está aqui a decidir não é realmente o prekinder, mas o tal percurso que vai levar estas crianças até à universidade, como nos contou o pediatra. Nas sessões informativas, os pais chilenos praticamente não perguntavam nada sobre a rotina ou os métodos do prekinder, de como iria ser a vida dos seus filhos no próximo ano letivo. Perguntavam, isso sim, sobre matemática, sobre o ensino do inglês, se o enfoque da escola era mais de ciências ou humanidades e quais os cursos que os ex-alunos da escola mais seguiam uma vez na universidade. Perguntavam sobre politicas antibullying e programas de voluntariado. Aliás, uma das entrevistas de pais de que participamos, consistia precisamente num caso prático para discutir em grupo como abordaríamos uma situação de bullying entre miúdos de 10 anos… Para estes pais, quem eles têm lá em casa são já os seus futuros filhos adolescentes. Ora, nós lá em casa temos um piolho pequeno que nem os quatro anos cumpriu e que ainda acha que se tapar a cabeça fica escondido, mesmo com as pernas de fora.
Eu quero cartolinas, papeis pintados e areia do pátio nos sapatos. Eu quero uma certa liberdade criativa nesta etapa, lá terá o tempo para aprender sobre matemáticas e, mesmo então, o que espero realmente da minha escola ideal é que lhe ensinem espirito crítico e ética de trabalho – Sim! Este lindo discurso hippie saiu-me da alma a meio de uma entrevista. Palavra por palavra. É bonito ter o discurso hippie, outra coisa seria atuar em consequência. Quero afinal criar um bom cidadão? Não deveria a sociedade ser mais igualitária? Barimbar-me nos colégios, neste processo absurdo, e matricular o meu filho na escola pública? Essa escola pública focalizada em memorizar em vez de aprender, que no Chile tem greves, barricadas e por vezes instalações vandalizadas pelo menos uma vez por ano… não tenho coragem. Sou uma hippie de salão.
Quando digo às pessoas que passei mal durante este processo das candidaturas, não é força de expressão. Desculpem-me o excesso de informação, eu tive diarreia durante um mês e no mês seguinte a minha pálpebra esquerda começou a tremer descontroladamente. Aquela culpa, cada vez que passava de fininho à frente dos Recursos Humanos, todas as vezes em que cheguei tarde e saí cedo, para entregar papeis, ir a entrevistas, avaliações a horas absurdas. Vão-me descontar dias de certeza, pensava! E depois a longa espera pelos resultados. Com o desgaste físico e emocional e mais o ranho constante do meu filho mais novo, apanhei uma pneumonia.
Resumindo estes dois meses, candidatamos o nosso filho a seis escolas, levámos duas negas, conseguimos participar em quatro processos de seleção. Desistimos de um depois da entrevista com os pais e, dos três processos que fizemos até ao final, em todos obtivemos uma resposta positiva. Contas feitas: três vagas e uma pneumonia!
As escolas escolheram o nosso filho, mas nós também tivemos o privilégio de poder escolher a nossa escola no final. Uma escola que o levará nesse percurso certinho chilensis, do berço até à universidade, mas também aquela escola que, por agora, lhe vai dar cartolinas, papeis pintados e areia nos sapatos.
VISTO DE FORA
Dias sem ir a Portugal: 1 ano e 2 meses aproximadamente…
Nas notícias por aqui: Criminalidade aumenta por quarto ano consecutivo desde 2013.
Sabia que por cá…. Os postais de Natal podem chegar em Maio! E um postal de Natal demora mais a chegar de Santiago a São Paulo do que de Santiago a Nova Iorque!
Um número surpreendente: Uma farmácia em cada esquina. Literalmente.