Pula, 1905
Munido da força dos seus 22 anos, um muito jovem James Joyce procurava escapar ao conservadorismo católico e obscurantismo estético irlandês que acabara de lhe censurar uma primeira versão de Portrait of the Artist as a Young Man. Em fuga pela Europa continental, procurava a libertação de um espartilho intelectual que o sufocava, de espaços onde não se revia, de um país para si demasiado pequeno. Assim, associou-se à Escola de Línguas Berlitz como forma de se fazer à vida. Procurou posto em Zurique, depois Trieste, finalmente assentando em Pula, importante estaleiro naval do Império Austro-húngaro. Aqui ficaria um par de meses ensinando inglês a oficiais navais do Império central europeu, entre eles um quase imberbe Miklós Hórty.
Desiludido com esta Sibéria Naval – como descreverá elegantemente à tia – Joyce mudar-se-ia novamente para Trieste, cidade entendida como mais adequada às suas pretensões urbanas e ensejos intelectuais. Desencantado, tentou Roma, que também não lhe funcionou, depois Trieste, outra vez, um regresso a Dublin, e novamente Zurique, e Dublin, e novamente Trieste. Por todos estes mundos navegava, vagueando, escrevendo, pensando. Entendia-se como um cidadão livre, solto de amarras nacionalistas ou de preconceitos culturais bacocos, fazia-se à vida devagar, ou rápido, Como podia. Como queria. Livremente procurava-se. Solto. Desejoso de ver Mundo. De se ir definindo nos seus Mundos.
Gorizia, 23 de Maio de 1915. A Itália declara guerra ao Império Austro-húngaro
100 anos depois, em 2015, forças neo-fascistas italianas associadas à Casa (Ezra) Pound procuram apadrinhar a data marcando uma grande manifestação de apoio à guerra, assinalando o que julgam ser uma importante data no nascimento da ideologia fascista. Na realidade, a I Guerra destruirá o que antes fora uma urbe multicultural, multiétnica e multi-religiosa, e a II Guerra irá definitivamente dividir a cidade pré-alpina em duas: Gorizia italiana e Nova Gorica Jugoslava. Por casualidade na véspera encontrei-me em pleno quartel-general do comité organizador que, do lado esloveno, preparava uma grande contra-manifestação, anti-fascista claro, contra a guerra e contra a divisão artificial que se construíra no último meio-século. A maior manif anti-fa organizada em território esloveno.
Envolvido, debatíamos conceitos de fronteira e de como a política e a história obrigara à introdução de uma fabricada relação conflituosa entre gentes e povos, forçando o antagonismo entre o «Nós» e os «Outros». Como português perguntavam-me como via estas divisões, estas fronteiras, estes conflitos. Pensei. E como lisboeta respondi que víamos no mar oceânico, neste nosso agreste e salgado Atlântico, os limites sonhados das nossas fronteiras. Sem polícia, alfândega ou controlo prévio. Assim que o nosso imaginário do «Outro» remetia-nos não para um conflito com gentes ou povos, mas antes para um confronto com o desconhecido, e com todas as possibilidades que advêm de um futuro contacto com o incógnito, com o anónimo, com o estranho. E de como este estado mental simultaneamente nos aguçara e condicionara a liberdade e as certezas pré-condicionadas, por um lado atraindo-nos à sua exploração, por outro fixando-nos em terra.
Julgo ser este o nosso fado, disse. Eles, sorriam.
Budapeste, Junho 2015
Conheci mais um português. Chamemos-lhe «Bruno». E o Bruno, com trinta e poucos anos, justo acabado de aterrar na belíssima capital Magiar numa das suas noites quentes de Verão, contava-me da sua recém-iniciada aventura por terras da Europa Central. De como, por 2010, depois de acabado o curso em gestão, se lançara no mercado de trabalho com força e genica, enviando currículos para onde se lembrara, recebendo do esforço mais de metade de respostas e convites de entrevistas. Lá se orientou e, 4 anos depois, já com mestrado na mão, experiência e diversidade laboral, voltou ao mercado.
Desta feita, contava-me agastado, organizou uma folha de Excel com todos os contactos que fizera, e respectivas respostas: 160 currículos enviados, 2 respostas, zero entrevistas. Zero. Tudo fechado, disse. Fechado e sem futuro. Desiludido fez-se à vida, perguntando ao Google por «Jobs for Portuguese abroad». Na resposta, um par de ofertas para Budapeste, onde semanas mais tarde aterrava com contrato firmado e companheira a caminho, também ela com um par de entrevistas alinhavadas.
Livre, disse-me se sentir. Tristemente livre, acrescento eu. Pois se por um lado, como cidadão europeu, seguro que se sente capacitado para procurar no espaço de uma União sem obstáculos por condições de vida decentes que lhe respeitem o trabalho e as qualificações. Por outro, vê-se obrigado a sair do imaginado nos rabiscos dos seus sonhos, onde plantara as sementes das suas ambições e julgara que assentaria arraiais.
Tenho conhecido tantos «Brunos» por aí, tantos que por questões de liberdade têm saído de Portugal por já não suportarem a asfixia surda que silenciosamente lhes aperta as mordaças, esganando e ceifando a seiva dos seus alentos. Tantos que olham para o nosso Atlântico como fronteira sem portagem, como porta giratória de entrada para novas aventuras que os qualifiquem ainda mais. Partem de um país demasiado cartelizado, que lhes recusa trabalho digno e qualificado, que os desconsidera económica e financeiramente. Hoje, depois da Troika e em plena Gerinçonça, alguns já arriscam o regresso, confiando que o pote de ouro se encontra no arco-íris dos tuk-tuks, dos airbnb’s ou no sol & praia das costas do Atlântico que acolhem triunfalmente Websumit e Madonnas.
E falo de Brunos como podia falar, por outras razões, de Zsofi’s, ou Balint’s ou Ezter’s.
Todas partem como Joyces, escapando ao conservadorismo e obscurantismo, como gente livre. «Lá fora» dependem apenas deles próprios, não de cunhas ou da boa vontade de um qualquer compadre. São pagos pelo seu trabalho, e a horas, recompensados pelos seus esforços, pela sua inovação e criatividade, ideia de negócio ou contributo à investigação científica. E vivem. Ou vão vivendo. São jovens e menos jovens os que se aventuram neste novo mundo como Vascos da Gama modernos, sem pretensões de expansão ou conquistas imperiais, apenas com vontade de encontrarem um lugar onde possam ser felizes e completos, neste mundo-aldeia onde vivemos. É malta que vai trabalhar para as cities de Londres, Paris ou Madrid, montar negócios de pastéis em Berlin ou Bruxelas, trabalhar em multinacionais em Budapest, em centros de investigação nos EUA ou no Reino Unido, em cafés e restaurantes aqui e ali. São milhares e milhares de histórias de gente de cepa dura a fazer-se à vida, a tal geração qualificada pela democracia, mestrada e doutorada na União Europeia, com muita vontade de fazer algo de significativo, não em se instalar, depender de algum cunha ou apelido hifenizado que lhes abra portas.
Talvez tenha sido sempre este o nosso Fado, lançarmo-nos ao pelos mares sem pejo ou medos, livres como “Joyces”, e condicionados como “Brunos”. Capacitados para transformarmos o incógnito em conhecido, o anónimo num amigo. A aventura aberta como ponto de destino. De liberdade. E por aí iremos andar, como cidadãos-livres, produtos inacabados de uma Europa-Erasmus hoje infelizmente bem mais inquisitória que reformista ou renascentista.
Pois livres entendemos – cidadãs e cidadãos europeus do século XXI – o espaço geográfico fora das tradicionais fronteiras nacionais, com perspectivas bem mais largas que as visões condicionadas dos nossos quintais, esses espaços nacionais artificialmente construído, e hoje violentamente defendidos por políticos extremistas, vendedores de ódio e medos fáceis, Homens sem categoria e espinha moral (sim, porque falamos essencialmente de Homens), que procuram ressuscitar uma Nova Ordem europeia recalcada de discursos identitários passadistas, agarrados a Visegrad, mas esquecidos de Roma, Atenas, Constantinopla-Istanbul, Budapeste, Varsóvia ou Lisboa, e de tantas outras cidades-berço do multiculturalismo genético que sempre cobriu o solo Europeu de pluralismo religioso, linguístico e étnico; todos traços indeléveis da fisionomia Humanista e deste espaço de mobilidade e liberdade que sempre foi o Velho Continente.
E se assim sempre fomos, quando nos apresentávamos no nosso melhor, porque são hoje tantos os que preferem recordar a barbárie das Cruzadas, do espírito persecutório da Inquisição e incutir medo e conflito no nosso quotidiano? É assim tão fácil esquecer?
Esquecer que um dos principais momentos identitários da Hungria moderna, o de 15 de Março de 1848, quando bastou um poema nacionalista fervorosamente declamado por Petőfi Sándor na (hoje) praça Vörösmarty para colocar Peste no mapa revolucionário da Primavera dos Povos e mobilizar a elite política e cultural húngara em torno do grito de Liberdade plasmado nas primeiras estrofes de Nemzeit Dal («Canção Nacional»), Budapeste era essencialmente uma cidade alemã, replecta de outras ascendências, entre as quais a húngara?
Ou que esta diversidade, replicada em Varsóvia, Praga, Lviv ou Bratislava, simbolizava a amplitude cultural vivida nos territórios da Europa Central e de Leste, em especial nas suas principais cidades, sempre habitadas por fortes minorias germânicas, diferentes povos eslavos, judeus, católicos, ortodoxos e/ou protestantes? E que esta pluralidade seria somente contestada pela decisão das elites conservadoras do pós I Guerra de se associarem a diversos projectos etno-culturais de renovação identitária em voga na Europa da Nova Ordem Fascista? E que na essência procurava a regeneração de cada espírito nacional, e a criação de uma nova narrativa identitária, liberta de influências externas, que conseguisse produzir um Novo Homem (nacional)… Será que não entendemos que subjacente aos discursos xenófobos disseminados hoje se encontra a tentativa de conclusão destes tais projectos, considerados descontinuados pelo Comunismo? E daí um regresso, nada subtil, às narrativas dos anos 30 e à gritante e abusiva intromissão no campo da «Política de Memória» verificado recentemente em países como a Polónia ou a Hungria?
Infelizmente, as instituições afundadas em Bruxelas não se parecem preocupar muito com estas questões de identidade, pois se o fizessem perceberiam que estão a ser colocados em causa os alicerces do projecto europeu, assentes em leituras dinâmicas e culturalmente transnacionais, em nada em acordo com reducionismos nacionalistas ou revisionismos históricos. É pena que estejamos a regressar a momentos nada felizes da nossa história partilhada, pois a nova ordem prometida pela União (europeia) não deveria necessitar que novos poetas, hoje da Praça do Luxemburgo, reivindiquem novamente a nossa emancipação, agora da escravidão dos nacionalismos, das multinacionais, das Troikas, e de quem deles se alimenta e depende. Não entendem, esses políticos de algibeira (nacional), que depois de tanto combate pela Liberdade, tanta luta contra todas as formas de obscurantismo, escravos deles já não seremos? Pois se antes era normal nascer-se em Portalegre, estudar em Coimbra, trabalhar no Porto e depois Lisboa, nunca sair; hoje de Portalegre embarcamos de Erasmus para Varsóvia ou Praga, mestrado em Londres, doutoramento em Roma ou primeiro trabalho em Berlim. Já saímos do controlo. Político. Transgredimos espaços em busca de novos cheiros, outros risos, novas fórmulas existenciais afastadas da política, desta política nacionalista e economicista que, como os censores de Dublin, os fascistas de Gorizia, ou as Troikas de Lisboa ou Atenas nos forçam a enveredar por uma estranha forma de vida.
Sem stresses, pelo contrário, mas com pena de tanto deixarmos aos «Outros», àqueles que, mesmo que nos queiram esconder, vemos com facilidade debaixo das sombras escondidas nas parangonas dos jornais e nos biombos rotos de papéis do Panamá. São o tais 1%, os Donos Disto Tudo. Os que abertamente mutilam finanças públicas para vender austeridade, para proveito próprio. Que nos retiram da boca o pão, para proveito próprio. E que adiam vidas, e países, para proveito próprio. Destes ainda não conseguimos a libertação. Nem do novo Imperialismo que esconde nos meandros do mundo corpo(rativo) os contornos metalizados das suas amarras, que nos anestesia com exércitos de produtos de consumo imediato, nos adormece com «likes» e «selfies», nos dá pão velho, e circo triste.
Vai-lhes valendo a nossa simplicidade, em certa medida complacente. De apenas procuramos ser o que queremos, onde queremos, com quem queremos. Que não nos chateiem. E nos deixem andar. Se estivermos mal, mudamo-nos. Novamente se tiver de ser. Se nos asfixiarem, reclamamos. Mas baixinho, pois convém não levantar ondas. Saberemos sempre assentar, com aquele jeitinho muito nosso, e guitarras bem afinadas, em qualquer Pula, Budapest ou Gorizia, cuidando das cordas e tranquilamente acrescentando diferentes tonalidades aos velhos acordes do nosso Fado.
E Qui ça bardando, mesmo que a capela, a saudade em poemas de Liberdade.