Sou um caso privilegiado. A relação que tenho com a minha mãe é de uma profundidade e generosidade que tentar explicar a sua dimensão seria uma perda de tempo. Nunca o leitor iria conseguir perceber, por incompetência de quem escreve, eu.
Sem cariz obsessivo, a dependência que sinto para com a minha mãe tem-se mantido entre os limites do razoável. Somos amigas, daquelas que se conhecem nos silêncios, se descobrem a cada dia e confiam. Cegamente. Sem pestanejar. Funciona também como os mitos entre gémeos. Quando uma está em perigo ou embrulhada em maus lençóis a outra, lá bem de longe, sente que “qualquer coisa não está bem”. É uma sintonia platónica. Inexplicável e quase irreal. Confesso que pode ser uma coisa que só existe para nós. Mas estamos bem com isso.
Outro dia, dei comigo a pensar em como até hoje – com certeza por minha culpa – não encontrei um texto que mostre esta relação entre emigração-mãe-mãe-emigração.
Se há quem pense que as nossas mães em nada se relacionam com o processo de emigração, lamento informar, estão errados. Assim, de boca cheia e coração aberto. Estão errados. As nossas mães funcionam como elementos chave em toda esta aventura de um outro país diferente, de uma cultura diferente, do idioma estranho.
A importância das mães dos emigrantes devia ser assunto de discussão pública. É que em grande parte dos casos, são elas a balança da nossa estabilidade. São elas as guardiãs da coragem que tantas vezes nos atribuem. “És muito corajosa. Macau, tão longe. Sozinha. Sem conhecer ninguém!?” – A culpa é da minha mãe. Juro.
A verdade é que é com elas que partilhamos as dores e as alegrias com que a nova terra nos brinda. Elas conhecem os nossos novos sítios de olhos fechados, reconhecem os nomes dos novos colegas, dos novos amigos e odeiam com toda a força do mundo, de lá para cá, quem nos fez mal.
Chamam-se Ana, Maria, Florinda, Judite, Pureza, Dulce, Isabel e tantos outros nomes mais.
Percebo que possa parecer estranho para alguns, mas não duvido que para outros esta seja a equação mais fácil de resolver. As nossas mães sabem tudo. Amam-nos a quilómetros de distância e conseguem, quase que por magia, parecer sempre presentes. Ali, ao virar da esquina. Entram-nos no pensamento em segundos e não há um dia em que não pensemos nelas.
Também por magia, vão vivendo esta vida dupla. Vivem lá, mas multiplicam-se em mães fantasma entre a vida do filho ou dos filhos. Uma filha em Macau, outra em Londres e outro na Argentina? Não há crise. Há mãe para todos. Estão a par de quase tudo e mantêm as novidades da família em ordem.
Continuam com as perguntas de mãe. “Já jantaste?”, “Precisas de alguma coisa?”, “Devias comprar um desumidificador melhor, essa tosse não há meio de passar”. Fazem-nas como se vivessem no apartamento ao lado. Como se a resposta “sim, preciso que me tragas sal” fosse um cenário possível. E, não haja qualquer dúvida, quantos de nós gostariam que o sal da nossa mãe estivesse a 5 minutos de nós. O quanto gostaríamos que o cheiro a mãe estivesse a uma paragem de autocarro. Quantas vezes gostaríamos de só a ter ali, ao nosso lado. Tão simples. Tão bom. Ali, junto a nós.
Todas as mães merecem o pódio de campeãs, mas as mães dos emigrantes merecem qualquer coisinha mais. Ouvem-nos do outro lado da linha, a qualquer hora, a qualquer fuso. Veem-nos crescer através de um ecrã, passeiam-se connosco pelo Vietname sem nunca sair do sofá. Conhecem os netos pelo Skype e, tantas outras vezes, limpam-nos as lágrimas sem nos chegar a tocar.
Amam-nos mais. Quanto mais longe mais amam. Fazem-nos aguentar tudo. Por ela, por nós, pela história. Garantem que no dia em que decidirmos voltar, estão lá, de braços abertos para nos receber. Contam sem errar os dias que faltam para chegarmos. São os nossos anjos sem asas. Que nos empurram e aconchegam. Que tornam esta aventura no outro lado do mundo, uma das melhores da nossa vida. Sem nunca aqui chegar. Sem nunca aqui tocar.
Até já mãe, Feliz Natal.