Emigrante é uma pessoa que quando sai de casa, está no estrangeiro, rodeado por pessoas que falam estrangeiro e fazem coisas que os estrangeiros fazem, no estrangeiro. Para ele/ela cada dia é uma nova descoberta e uma nova aventura. Esta é, de uma forma simples, a percepção que eu tinha do que seria ser emigrante, antes de ser emigrante.
Mas não é bem assim.
A vida no estrangeiro, depois de algum tempo, tende a convergir para uma certa normalidade. Normalidade não é, na realidade, uma coisa absoluta. E aquilo que é normal aqui, não é necessariamente normal aí. Mas uma pessoa habitua-se (a quase) tudo.
No meu caso, eu já cá estou há mais de 14 anos, e há muito pouco de anormal no meu dia a dia. É normal falar estrangeiro, e é normal que os meus filhos falem estrangeiro comigo. É normal ir ao supermercado, ou às compras ao centro, ou ir ao parque infantil com os miúdos. É normal ir a casa de amigos, ou levar os miúdos às festas de anos dos seus amigos.
A minha rotina diária é muito normal. Todos os dias acordamos cedo, eu preparo as caixas com fruta e sandes para os miúdos levarem para o lanche da manhã, e logo lutamos com eles para que saiam da cama, comam o muesli e se vistam para chegarem à escola antes das 8. A escola fica perto de nossa casa, e os dois mais velhos vão de trotinete e o mais pequeno de bicicleta. É normal no Inverno estarem zero graus ou até menos e estarmos todos de gorros, luvas e cachecóis. Chegamos à escola sempre em cima da hora e eu a gritar para eles se despacharem a por os cadeados nas trotinetes. Depois deixamos o mais pequeno no jardim de infância, que fica logo na próxima esquina. O ritual de tirar-lhe as camadas de roupa e calçar-lhe os chinelos é sempre o mesmo.
Logo seguimos para o trabalho, são menos de 3 km que se fazem em pouco mais de 10 minutos de bicicleta. Faça chuva ou faça sol, invariavelmente vamos de bicicleta. E esses 10 minutos de manhã e à tarde são o principal desporto que faço por estes dias, e sabem bem.
Chego ao trabalho pelas 8 e meia e tomo o pequeno almoço na cafetaria, normalmente com as mesmas pessoas. No trabalho, falamos normalmente em inglês o dia todo. Como tenho a sorte de actualmente, poder trabalhar em part-time (80%), é normal pelas 3 e meia o meu dia de trabalho já estar a chegar ao fim.
É hora de ir buscar os miúdos e levá-los para as suas actividades, o mais velho faz kung-fu, o do meio está a aprender a tocar guitarra, e o mais novo vai à música, tudo isto em dias diferentes. Chegados a casa, verificamos que os trabalhos de casa estão bem feitos e depois sobra-lhes um tempinho para brincar ou ver um desenho animado no Netflix (não temos televisão), antes do “Abendbrot”. Aqui na Alemanha é normal que o jantar seja pão com queijo ou fiambre, às vezes uma sopa. O que eu, pessoalmente, acho bem, porque os nossos miúdos dormem melhor assim, do que com a barriga cheia com um jantar à seria.
O mais tardar às 8, os miúdos estão na cama, e normalmente lemos um capítulo de um livro e conto uma história em Português para treinar os seus neurónios. Não é mesmo nada fácil ser consistente no uso da língua, especialmente quando os pais têm línguas diferentes e quando se passa o dia inteiro a falar em estrangeiro, o cérebro começa a negligenciar a língua materna. É normal eu pensar e sonhar em inglês. Mesmo para escrever esta crónica, às vezes tenho que traduzir as ideias. Mas os miúdos percebem tudo em Português, o mais velho fala fluentemente com a minha mãe ao telefone, o do meio desenrasca-se bem, e o mais novo diz uma ou outra palavra.
Depois de estarem os miúdos a dormir, também o nosso dia chega ao fim, estamos normalmente estoirados. Arrumamos e preparamos as coisas para o dia seguinte, dou um salto ao supermercado que fica perto, e com sorte vemos um episódio de uma série qualquer. Leitura não prescindo, é o meu hobby mais consistente. Teatro em inglês é o outro hobby, mas mais irregular. Quando estou envolvido numa produção, normalmente uns 3 meses por ano, então um ou outro serão por semana são para ensaios.
Aos sábados de manhã, tentamos esticar um pouco o tempo na cama até às 8, mas os miúdos não perdoam e começam a pedir atenção. Ir buscar pão fresco para o pequeno almoço na padaria da esquina é um hábito adquirido e muito apreciado. Assim como moer o café para ferver numa cafeteira tipo italiana.
O facto de termos uma loja portuguesa no bairro é, para mim em particular, uma pequena ajuda também à normalização, isto é, é normal termos manteiga Mimosa e queijo Limiano à mesa mais umas azeitonas bem temperadas, uns pasteis de nata congelados para ir ao forno, e os miúdos beberem, de vez em quando, Sumol de Laranja.
Para quem esteja a pensar emigrar, mas tenha receio de que isso implique um grande desvio em relação à sua actual normalidade, a minha mensagem é, que esse será definitivamente o caso nos primeiros meses; mas que ao fim de algum tempo todos acabamos por convergir para uma nova normalidade que apesar de diferente da anterior, será na mesma normal e familiar, com coisas melhores e outras piores. Mas normal.