Não é segredo que Macau é um lugar de chegadas e partidas. Por outra ocasião partilhei o desgosto de ver alguém, já considerada família de Macau, ir. Seja para Portugal ou para outro sítio qualquer. Alguém que outrora nos recebeu, ou que recebemos, ou com quem chocamos entre as avenidas atoladas de turistas. É um facto, isso faz-nos doer o coração. Semeia um vazio no nosso peito. Tira-nos um pedaço de carne e obriga-nos a disfarçar que está tudo bem, enquanto nos vamos cicatrizando. É uma parte do todo que é esta vida de emigrante. “Faz parte”.
Mas importante é também falar daqueles que chegam. Aqueles que nos perguntam daí, como é viver aqui. Aqueles que trazem um coração tão saltitante que ainda estão a cruzar o mundo e nós já lhes sentimos a pulsação. Esses que chegam com o brilho nos olhos de entusiasmo, ou com a testa franzida em estado de alerta.
Esses que chegam e trazem na bagagem todas as perguntas do mundo, não sabem que trazem outras coisas aos olhos de quem os recebe. Recordações, muitas recordações. Recordações de quando eram os nossos olhos esbugalhados com tantas luzes, de quando era da nossa boca que disparavam todas as perguntas do mundo.
Não sei como é nas outras comunidades. Não sei como são os portugueses noutras bandeiras. Mas aqui, sei. Ou pelo menos acho. Sei que os portugueses em Macau cumprem eximiamente a sua função de anfitriões. Não há para mim povo que saiba receber tão bem quanto os portugueses. Quando queremos, somos os melhores do mundo no abraço ao novato, na porta aberta às novas pessoas, na partilha da mesa cheia de comida e conversa.
A terra não é nossa, mas é como se fosse. Mostramos os cantos à casa, damos, aquelas que achamos ser, as melhores dicas, e os novatos lá vão absorvendo tudo com a maior rapidez que lhes é possível. A informação é tanta que chega a dar tonturas. E, no fim, quando nos recolhemos no silêncio do lar, nós, aqueles que guiam, percebemos o tempo que passou. Viajamos na gaveta das memórias até ao dia em que éramos nós a chegar, relembramos as primeiras pessoas que conhecemos, o primeiro restaurante a que fomos, o primeiro dia do novo trabalho, as visitas aos mercados, a compra do Macau Pass, as idas às “zonas mais chinesas e menos chinesas”. Lembramos a transformação de verdades absolutas em sacos de nada. Pensamos nas pessoas que desapareceram ou as que eram para ter sido mas nunca chegaram a ser.
Essa viagem obriga-nos a reflectir também naquilo em que Macau nos transformou. Somos melhores ou piores? Olhar o passado não tem de ser um processo doloroso, antes pelo contrário. Mas gostar mais do que éramos do que aquilo que somos pode ser um processo difícil de digerir. Isso, ou a melhor chamada de atenção para uma mudança necessária.
Macau muda-nos. Ela própria muda. Ensina-nos coisas boas e más. Somos nós que fazemos as escolhas. Somos nós que decidimos qual o lado de Macau que queremos viver. Quem queremos ser e para onde queremos ir. A segunda vez que fui a Portugal a minha mãe, dona de mim, olhava-me atentamente enquanto eu fingia não perceber-lhe o exame. Na nossa cumplicidade e sintonia, perguntei-lhe, sem tirar os olhos do livro, o que estava ela a observar.
“Estás diferente, filhota. Macau mudou-te, fez-te crescer. Fica feliz por isso. Os melhores sítios do mundo são os que nos obrigam a abrir os olhos, a aceitar a diferença e a saber abraçar a vida”.