O sítio onde trabalho duas vezes por semana fica metido no campo. Chego a ele depois de abandonar a auto-estrada, a estrada secundária e finalmente o estreito caminho de terra batida, de curvas e contra-curvas, onde só cabe um carro. Fica atrás de um portão azul grande, a minha referência nos primeiros dias, quando ainda me perdia.
Chego de manhã, por volta das nove e meia. O calor ainda não se instalou e a luz recai dourada e inclinada na terra verde à volta da casa. Há um pequeno quintal onde se plantam ervas e verduras; um charco, onde já houve galinhas e agora se espera ter patos; dois ou três gatos que se escondem no cesto das cebolas, ou se roçam por entre as cadeiras e as pernas à hora de almoço. É um lugar calmo, onde dá gosto chegar. A casa é humilde e funcional, nada de bonito nela, construída em tijolo, pintada de creme, com um pequeno pátio de cimento à frente e outro maior atrás, a separá-la de outro edifico, onde funciona a cozinha.
A enfermeira chefe, quando está, alegra a manhã. É também ela refugiada birmanesa e sorri tanto com os olhos como com os lábios. Sou tratada com todos os requintes e presenteada com chá de mel e lima, doce até fazer tremer os dentes, mas feito com tanta dedicação que não há como não beber até à ultima gota. Às vezes, nos dias em que vou, está também uma francesa, enfermeira voluntária, recém licenciada, numa experiência que com certeza lhe moldou e amadureceu a juventude. Veio por sete meses, a receber um salário mínimo, e quando não está na casa é porque acompanha os doentes ao Hospital. Por alguma razão não é presenteada com o chá e sinto que, compreensivelmente, não aprecia muito a descriminação.
Neste dia em que chego, passo sem reparar já nas três camas que estão logo à entrada. Funcionamos assim enquanto seres humanos: o que muito nos impressiona num primeiro impacto vai perdendo força com a repetida exposição. Há cinco meses atrás entrei aqui á espera de encontrar pernas e braços partidos a caminho da recuperação e da reintegração na comunidade. Mas deparei-me antes de mais nada com estes três infelizes que aqui hão-de ficar até ao último suspiro. Se houvesse dúvidas, o facto de lhes faltar parte do cérebro, de terem a cabeça mais ou menos achatada num lado, ou toda a testa removida, esclarece: ao defeito visível na cabeça corresponde o fim da esperança na normalidade. Não têm para onde ir nem quem possa tratar deles. Vieram para a Malásia ganhar dinheiro para a família, que ficou na Birmânia e é pobre para além do descritível. Sim, porque há que esclarecer que grande parte dos hospedes da casa não são refugiados, são puramente emigrantes económico e, como tal, com menos direitos ainda. Refugiados e emigrantes confundem-se quando a pobreza no pais é ela também um atentado à sobrevivência humana.
Na segunda cama a contar da entrada, talvez o caso mais dramático, está um jovem na casa dos vinte anos a quem vou aqui chamar Peter para simplificar. É refugiado reconhecido pelo ACNUR, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados – o que vale de pouco na Malásia mas que quer pelo menos dizer que há possibilidades de ser recebido por um país que tenha assinado a Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados. E foi o que aconteceu. O Peter e a mulher grávida receberam asilo nos Estados Unidos – nuns Estados Unidos pré-Trump, onde a notícia do destino tinha outro brilho. A mulher foi primeiro, para dar à luz a criança onde lhe podiam assegurar cuidados hospitalares. Ele ficou. No dia em que foi buscar o dinheiro para a passagem aérea, foi assaltado e múltiplas vezes atacado com um pau na cabeça. Sussurra-se baixinho que estes ataques aos refugiados e emigrantes são frequentes, e que quem está por detrás são as próprias autoridades, mas sussurro aqui também baixinho, porque a acusação é grave e eu não tenho provas. Fosse quem fosse o protagonista, o dano lá ficou para sempre: Peter deixou de ser Peter. Não ficou só sem dinheiro, mas também sem parte do crânio – o cérebro desfeito do lado esquerdo. A esposa veio vê-lo, com o pequeno filho ao colo, esse ser estranho que mal se mexe e não fala, que não se sabe se reconhece alguém, que tem uma algália e não sabe comer sozinho e foi-se embora. Quem atira a primeira pedra?
Mas as horas voam nas duas manhãs em que aqui venho e já aqui não paro, sigo directa para a cama em frente ao escritório, a minha maior alegria quando aqui chego. Em Fevereiro, no meu primeiro dia, encontrei-o engessado da cabeça ao umbigo. Tinha uma fractura cervical e acreditava-se que era tetraplégico e nunca se ia levantar da cama. Gostava de dizer que fiz um milagre e as minhas capacidades terapêuticas são extraordinárias, mas a verdade é que os meus humildes conhecimentos encontraram neste paciente uma força de vontade fora do comum. Começámos por mexer as penas, por substituir o gesso por um colar, por sentar quando alguém lhe dava o almoço. Depois foram os braços e as mãos e o comer sozinho, algumas garfadas apenas, muitas com o conteúdo a regressar ao prato em vez de viajar até à boca. A seguir o levantar da cama, devagarinho, o estar em pé por segundos. Depois o andar, acompanhado, depois sozinho. Ainda há muito por fazer, mais força, mais coordenação, até a independência ser total. É uma alegria vê-lo. Mas não sem uma sombra. Caiu de três andares quando trabalhava na construção. Por muito que recupere, não poderá nunca trabalhar onde a força física seja uma exigência. O trabalho será sempre uma limitação… mas sem trabalhar, neste mundo sem direitos, morre-se à fome. Seja como for, quando chego e o vejo a sorrir, contente com tudo o que faz já sozinho, esqueço-me desta moldura exterior e encho-me de alegria.
Hoje há contudo um paciente novo e é a ele que me dirijo em primeiro lugar. Um jovem entre os vinte e os trinta anos. Está sentado na cama, acabadinho de ser cuspido do hospital por não ter dinheiro para pagar os tratamentos. Com um dos pacientes que fala inglês e serve de tradutor enquanto ali está, converso com ele. Caíu da altura de um andar apenas, quando fugia da polícia que o tinha apanhado a trabalhar ilegalmente. Caíu mal contudo, e na queda fracturou a coluna. Uma única vértebra, mas que ficou feita em migalhas e destruiu tudo à volta. Como já desconfio de todos os diagnósticos que aqui chegam dos hospitais, onde emigrantes e refugiados são tratados como lixo, preparo-me para fazer o exame. Antes de ir às pernas, começo por cima, quero-lhe ver a respiração, perceber se está tudo bem. Pergunto-lhe se posso auscultar e ele diz-me que não e eu não percebo. Insisto e ele diz que não, mas ajuda-me a desabotoar os botões da camisa. Quando a camisa abre, descubro gesso. No hospital, engessaram-lhe o corpo, das axilas ao umbigo. Porque não fazem o tratamento cirúrgico que deviam porque custa dinheiro que o paciente não tem, colocam gesso para fingir que fizeram alguma coisa, um gesso que nada faz senão atrapalhar, fazer feridas, incomodar. Como prova do desleixo com que o fizeram, da total falta de empatia por uma vida que tomou um novo rumo, mais difícil, mais pobre, mais sozinha, fizeram o guesso por cima da t-shirt que ele tinha vestido. A t-shirt com a qual correu, fugiu e caiu, a t-shirt suja de terra e sangue. Ali está, debaixo do gesso, impossível de tirar e lavar, colada ao corpo com a sujidade e o suor.
Verifico as pernas. A sensação, os reflexos, o movimento. Tudo morto e silenciado. Olho para ele, olhos muito escuros e brilhantes, rosto moreno, bonito de juventude. Meço as palavras, peso-as, tento tirar-lhes o peso impossível, quando pergunto se já percebeu que é isto, que não há milagres aqui, que o que não tem agora nunca mais vai ter. Não vai andar, não vai amar com o corpo nunca mais. Descubro quando entro nestas portas, o pior e o melhor do ser humano. Somos uma espécie da qual tanto me orgulho como muitas vezes penso a paz que não será neste planeta, quando ela se auto-eliminar do universo.
Enfim, sinto que hoje preferia estar num sitio diferente e fazer uma coisa completamente diferente, que não me despertasse tanto rancor e tanta angústia. Mas depois chega a enfermeira chefe. Fala com ele em birmanês. Não sei o que diz. Ela ri-se, ele ri-se, toda a gente se ri, e o ar dissipa. A vida é pesada e leve, e ela percebe-o como eu ainda não consegui. Ela vem daqui, deste mesmo mundo; eu venho de um outro, onde a balança pesa a vida de forma diferente. Aqui, o sentido da vida não é a busca da felicidade, de viver cada momento como se fosse o último. Aqui, assegurar a sobrevivência é tarefa diária e pouco espaço sobra para divagar sobre o resto.