Há quem diga que os emigrantes têm a mania de que, por viverem lá fora, se tornam cidadãos especiais. Que o sotaque adquirido pelos anos a falar noutra língua nos dá um “je ne sais quoi” exótico e que umas janelas tipo “fenêtres” serão sempre melhores. No meu caso, uma casa tipo “ie” e um “domo arigatou gozaimasu” ganharam toda uma nova dimensão nos meus dias.
Depois há os que sentem que por estarem lá fora passam apenas a ver o seu país com outros olhos. É aqui que me encaixo, vendo tudo o que é nosso com os olhos mais rasgados mas com uma vista simultâneamente pormenorizada e periférica.
Na primeira ida ao supermercado após regressar do Japão senti-me uma patega. De repente, os corredores estavam povoados de produtos com rótulos que conseguia ler na íntegra e as minhas marcas preferidas acompanhavam a inovação e as tendências (e talvez tenha sido sempre assim porém, fruto da distância, a minha atenção é maior). A oferta é imensa, assim como a vontade de levar tudo para casa, pela saudade e pela curiosidade.
Uns quantos queijos frescos, requeijão, pão saloio e toalhitas com cheiro (que lá não há) depois e lá vou para a caixa de pagamento. A senhora que me atende gaba-me os brincos e eu, envergonhadamente, agradeço-lhe com 1/4 de vénia e saio a pensar que, também por lá, diálogos que vão além do “Pointokādo o motte imasu ka??” (tem cartão “poupa mais”?) são improváveis.
Andando pelo centro comercial, onde, ao contrário da minha irmã que encontra sempre alguém conhecido, nunca vejo nada nem ninguém, sinto-me estrangeira. É que por cá as pessoas não só nos tiram medidas como rapidamente nos “fazem vestidinhos”! E é algo a que já não estou acostumada. No Japão até posso sair à rua vestida de Xana Toc-Toc que eles não estão nem aí! Ou então primam pela discrição.
Para grande alegria nossa, desde que chegámos, o sol tem brilhado todos os dias mas eu insisto em pôr os limpa pára-brisas a funcionar na vez do pisca e, por vezes, tenho dúvidas se estou mesmo no lado certo da estrada. No GPS a senhora sabe sempre dizer os nomes das saídas e do destino, coisa que por lá se fica pelo “daqui a 200 metros vire na saída em direcção a ………”(nem ela sabe!).
Das primeiras coisas que também fazemos, assim que chegamos a Portugal, é ir a consultas com os nossos médicos, incluindo à pediatra da nossa filha. Nesta última, aproveitamos para actualizar o boletim de vacinas fazendo o cruzamento dos dois planos nacionais de vacinação.
Sim, dois!
A Ma-chan nasceu 3 meses antes do previsto e, desde então, é acompanhada pelo hospital que nos ajudou a consagrar este milagre. Cresceu sempre saudável e forte. Nunca adoeceu.
Na última ida ao pediatra, antes da viagem, falámos-lhe do nascimento dos dentes e de como isso a poderia incomodar, embora seja natural numa criança de 18 meses. O Dr. aconselhou-nos a visitar um dentista (não fosse dar-se o caso da menina precisar de aparelho)…
Há uns meses, quando deixei de a amamentar, lembro-me de perguntar qual o melhor leite para lhe dar e o Dr. respondeu-me que não podia dizer uma marca, que teríamos de ser nós a comprar o que achássemos melhor. Que nunca nada os comprometa!
Saímos de lá a rir, uma e outra vez.
Esteticamente falando, se há arte que apenas entrego às mãos que conheço é a dos cabeleireiros.
As japonesas são “control freaks” em matéria de cabelo e o tipo de cabelo deles, em geral, tem vida própria, o que faz com que sintam necessidade de o domar.
O meu, do tipo encaracolado e com uma vida própria que me agrada e com a qual tenho vivido bem, não requer grandes cuidados e, tal como eu, foge de quem o queira controlar.
Certo dia de festa em nossa casa, resolvi ir pentear-me a um cabeleireiro lá perto. Grande, de aspecto profissional e asseado, pareceu-me uma boa opção. Tinha o inconveniente de não falarem patavina de inglês, mas nada que uma fotografia do “hairstyle” e o meu japonês rudimentar não resolvessem. Mostrei a imagem e passei ao sector da lavagem. Acharam que precisava de uma hidratação e eu disse-lhes que não era o dia pois tinha pouco tempo. Passei para a cadeira do corte e pouco depois trouxeram uma pasta a cheirar a amoníaco. Temi o pior. Perguntei-lhes o que era aquilo e disseram que era para fazer o penteado. Besuntaram-me o cabelo com aquela pasta da raíz até ao meio do seu comprimento e ali fiquei à espera que actuasse. Fui lavar. Voltei para a cadeira. Segunda dose de besuntanço e já tinham passado 2 horas. Mais meia hora até lavar novamente e retornar à cadeira. Secaram-me totalmente o cabelo com o secador e nem uma escovinha lhe tocou. Foi logo um “adeus ó vai-t’embora”. Cinco “hairstylists” diferentes e 3 horas depois, saí de lá com meio cabelo com alisamento (que abomino!), sem o penteado que pedi e com uma vontade enorme de enfiar a cabeça na banheira. Nunca mais me apanham!
A escassos dias de regressar a casa, ao Japão, continuo a estabelecer comparações entre cá e lá, numa espécie de balanço da vida.
Ouvia, no outro dia, uma grande entrevista à actriz Rita Blanco sobre o filme “Fátima”, e uma das perguntas foi acerca da reacção das pessoas de Vinhais ao filme. Maioritariamente mulheres, falaram que as actrizes diziam muitas asneiras, como se estas não tivessem construído as suas personagens com base em factos reais.
A Rita Blanco disse uma frase que retive: “as pessoas têm pouca distância sobre si próprias”.
E é com o olhar agora focado em mim que concluo que, à parte da enorme riqueza que esta experiência me tem dado, o segredo da estabilidade emocional passa pelo apoio incondicional da família e dos amigos mas, essencialmente, reside na minha liberdade.
Partir sem âncoras. Viver feliz. Regressar ao porto de abrigo, sempre.