Emigrar para Bruxelas implicou também passar a ser um frequent flyer. Não me refiro aos cartões de fidelização e à acumulação de milhas, até porque normalmente voo em low-cost onde não há cá essas mordomias. Refiro-me, literalmente, à circunstância de ter passado a voar com frequência. Que, em rigor, faz tanto parte do meu quotidiano “lá fora” como o tempo que passo na capital europeia.
E se, para a maior parte das pessoas, viajar é uma fuga à rotina, a verdade é que eu acabei por criar a minha própria rotina de viagem. Começa no autocarro 12 (que, por algum mistério insondável, se inverte para 21 à noite e ao fim de semana) até ao aeroporto. Lá chegado, é inevitável parar por um segundo, respirar fundo e lembrar o sucedido há quase um ano.
Desde então, aquela infraestrutura foi passando por sucessivas metamorfoses. Houve zonas fechadas, terminais provisórios, percursos alternativos, controlos de segurança adicionais. Durante meses, o aeroporto estava constantemente a mudar. De cada vez que lá ia, os circuitos e os procedimentos eram diferentes. Depois, pouco a pouco, os espaços antigos foram reabrindo, sem vestígio da insanidade daquele fatídico dia, e a normalidade foi-se lentamente reinstalando, como se nada tivesse acontecido. Hoje, ninguém diria que ali rebentou uma bomba. Mas eu, quando olho para aqueles balcões de check-in, vejo neles um monumento à resiliência e ao inconformismo perante a barbárie. Os milhares de pessoas que ali embarcam diariamente – das mais variadas culturas, tradições e credos – são um testemunho vivo de coragem e de tolerância. O placard das partidas é a partitura de uma ode à paz e à sã convivência entre os povos.
Estes pensamentos não duram muito, porém. Logo de seguida há que começar a tirar as chaves dos bolsos, o computador e os líquidos da mochila e, muitas vezes, estender as mãos para o teste de explosivos. Após a segurança, uma moedinha de um Euro depositada numa espécie de caixa de esmolas dá-me direito a uma garrafa de água, atravesso o free shop sem sequer olhar (de início ainda comprava uns chocolates belgas para levar) e desço ao piso térreo, onde o acesso aos aviões se faz a pé – faça chuva ou frio, como tantas vezes faz.
Eis-me chegado ao universo Ryanair! Não há luxos, mas também não há ilusões a esse respeito. O conceito low-cost é mesmo levado a sério. E ninguém engana ninguém: pagas pouco, recebes serviços mínimos; queres algo mais, pagas extra. O contrato é claro e mudou a minha experiência de voar. Por exemplo, nunca tinha percebido a fila indiana que as pessoas formam para embarcar, visto que os lugares no avião são marcados. Agora, sou sempre dos primeiros a levantar-me para evitar que a mala vá parar ao porão.
Por falar em malas, não há ninguém como a tripulação da Ryanair a encaixar bagagem nos compartimentos superiores, parece que estão a jogar tetris com trolleys. Têm outros talentos, ainda. Designadamente o de conseguirem passar um voo inteiro a tentar impingir-nos coisas, seja comida, bebida, perfumes ou raspadinhas (que todos os dias estão “só hoje” em promoção). Felizmente, já consigo neutralizar todo esse burburinho mercantil como ruído de fundo e nem dou por nada. Chato é não haver sequer uma bolsa no assento da frente, onde guardar um livro ou o tablet. Mas parece que isso dificultaria a limpeza do avião e atrasaria a rotação dos passageiros em escala. Sim, porque a Ryanair funciona em sistema de “cadeira quente”: mal o último passageiro desembarca, começam logo a embarcar os passageiros do voo seguinte. Não há tempo a perder.
O tempo, de resto, é algo que a Ryanair leva muito a sério. De tal forma que, se o avião chega a horas (e mesmo quando se atrasa só uns minutinhos), logo começa uma corneta a tocar, assinalando com pompa e circunstância a pontualidade daquele voo e anunciando com garbo – e alguma gabarolice – a elevada percentagem de voos da companhia que cumprem o horário. Não tenho dados que me permitam infirmar tal percentagem, mas sei que já apanhei variadíssimos voos da Ryanair que chegaram com atraso (nesses casos, claro está, nem pio se ouve da dita corneta). Uma vez o atraso foi tal que me rendeu uma indemnização de 400 €, prontamente paga – o que, atendendo ao preço que tinha pago pelo bilhete, acabou por revelar-se um brinde inesperado e bem simpático.
Há muito que deixei de usar a Carris, mas agora voltei a apanhar o autocarro de carreira de e para Bruxelas – com a ligeira diferença de que este tem asas.
VISTO DE FORA
Dias sem ir a Portugal: 32.
Nas notícias por aqui: no sábado passado houve um alerta de ataque com antraz. Foi instalado um perímetro de segurança, 130 pessoas ficaram confinadas e, à cautela, 7 foram hospitalizadas, tudo por causa de um saco com pó branco que se veio a descobrir ser … droga.
Sabia que por cá: há uma estátua de Fernando Pessoa, em plena Place Flagey (uma zona onde se concentra grande parte da comunidade portuguesa). E não, não está a fazer xixi.
Um número surpreendente: 114 milhões de Euros / ano, é quanto custa o facto de, uma semana por mês, o Parlamento Europeu se mudar – de armas e bagagens – de Bruxelas para Estrasburgo.