Há uma rua em Macau, do lado do Porto Interior, tão minha, tão pele, que lhe sinto a falta todos os dias. Não foi um amor à primeira vista. Não se ama uma coisa tão feia no primeiro dia, vai-se aprendendo a amar até, sem armas, percebermos que não podemos fazer nada a não ser abraçar esse amor. A minha rua, tão minha, a minha Praia do Manduco. A rua que me deu guarida no primeiro dia que os meus grandes olhos olharam para Macau, que os pés, ainda quase a flutuar, sentiram o chão desta terra.
Fecho os olhos e penso em ti, Macau, terra húmida e de cheiro intenso, lembro o cheiro a flores da minha rua, os gritos dos vendedores, os chamamentos dos governantes das bancas de fruta a apelarem à atenção de quem por ali passa. Recordo o sorriso traquina do Wong, o vendedor de telemóveis (e derivados), que nunca desistiu de me tentar vender coisas das quais nunca iria precisar. São curtos metros de essência, carregados de ruas e ruelas que se unem à artéria principal. A esquina acolhe o Mercado de São Lourenço, um edifício com peixe fresco, muito marisco, vegetais a colorir a tela e candeeiros vermelhos tornando a ida ao mercado numa cena hollywoodesca carregada de romance. Mesmo em frente está o “Estabelecimento de Comidas Tomate”. Não questionem o nome, culpemos a tradução. Ali, com bancos de metal e mesas de madeira come-se o extraordinário Minchi de Macau. Minchi é um prato macaense com carne moída, ovo estrelado, arroz e, neste caso, batata frita aos cubos bem pequenos. Quem acompanha é o chá, que se quer bem quente, e quem quer guardanapos tem de comprar um pacote de lenços. Ninguém fala inglês, mas também não é preciso, basta dizer minchi. Confesso que depois de quase três anos nem isso preciso dizer, basta acenar com a cabeça como quem diz: “o costume”. Na hora de pagar é preciso ser cauteloso. Normalmente a novela está a passar no grande plasma colocado estrategicamente em cima do vidro que dá para a cozinha, portanto, é melhor aproveitar o intervalo para chamar uma das funcionárias, caso contrário terá de esperar, o que pode demorar longos minutos.
Seguem-se as longas bancas de fruta, a primeira é a mais cara, por ser a que mais variedade tem. A secção da fruta termina numa esquina de um prédio, são três funcionários que ocupam o espaço sem paredes. Um numa ponta da loja que nos dá os sacos, outro a arrumar a fruta e ajeitar aquela que já estava arrumada e, por fim, o “homem do dinheiro”, sentado numa esquina com uma caixa com notas e moedas e uma pequena calculadora com o valor que temos de pagar. Tem também uma balança velha e amolgada que define o preço.
Entre uma igreja e uma escola primária, seguem-se as bancas de flores onde as mulheres reinam. Todas passaram os 50 anos e são, para mim, a maior atração da rua. Sempre em gargalhadas e demoradas conversas umas com as outras, estas vendedoras não vendem, impingem ramos coloridos e molhos de verdes. Atiram-nos para as mãos e dizem mil e uma coisa numa língua que não percebo.
Eu vivia ali, de frente para aquela que eu achava ser a melhor vendedora de flores. Magra, de pele queimada, cabelo preto e bem seco devido a anos de tinta. Sem nunca trocarmos uma palavra ‘perceptível’, ela conheceu, por fotografias, a minha família e os amigos de Portugal. Eu conheci a dela. Trocámos flores e chocolates. Um dia deixei de a ver. Estranhei no segundo dia e, no quarto dia, não resisti a tentar perguntar por ela à vendedora do lado. Apontei para a banca como quem questionava, gravei a resposta e pedi a uma colega que me traduzisse. “Reformou-se. Agora só está com os netos”, explicou-me. Imaginei-a feliz e perdoei-lhe a ausência da despedida.
Ainda no meio desta rua e afastada das flores, bem perto da pastelaria, a senhora Lei vendia toalhas e panos com bordados. De cara cheia, sorria sempre que passava, levantava-me a mão com o peso das rugas, um movimento que requeria a autorização da bengala, sempre ao seu lado, como um cão de guarda. Sentei-me várias vezes nas cadeiras que formavam uma plateia de cinco lugares em frente à sua porta. Comprei panos que nunca usei, era conhecida de todos, menos da sua própria família que a abandonou num Centro de Recuperação, que, por coincidência, o jornal local Hoje Macau, o meu, na altura, local de trabalho, descobriu.
A Praia do Manduco merece ser contada. As suas pessoas merecem ser contadas. A vendedora dos chás, a vendedora das flores, o vendedor dos telemóveis, a vendedora dos panos, a senhora que recolhe o cartão para ganhar umas patacas. Todos aqueles que tornam esta rua a melhor de Macau. A Praia do Manduco transpira histórias que merecem ser ouvidas. Imagens de uma Macau tão humana, tão cheia de cor, cheiro e intensidade. Uma rua a que chamei casa e que jamais esquecerei.
VISTO DE FORA:
Dias sem ir a Portugal: 17.
Nas notícias por aqui: Decorre, desde Dezembro passado, o julgamento de Ho Chio Meng, ex-procurador da RAEM, acusado de 1536 crimes de burla, participação económica em negócio e abuso de poder.
Sabia que por cá… O Carnaval também se vive por cá. No fim-de-semana passado a discoteca Pacha recebeu a folia e cor do carnaval brasileiro, uma organização da Casa do Brasil em Macau. Por momentos estivemos todos a sambar no sambódromo.
Um número surpreendente: Excluindo o sector do jogo, os visitantes gastaram em Macau perto de 53 mil milhões de patacas (cerca de 6 mil milhões de euros).