Há uma passagem no livro “Rules for a Knight” do actor e escritor Americano Ethan Hawke, em que o cavaleiro, um alegado antepassado do autor, Sir Thomas Hawke, conta que estava a viajar com um companheiro, Sir Richard, por uma estrada no campo e aparece uma família numa carroça, e a mãe interpela-os: “Desculpem Senhores. Estamos à procura de uma nova casa. Como são as pessoas na próxima cidade?”, ao que Sir Richard retorquiu “Como eram as pessoas na cidade de onde vêem?”, ao que a mãe responde “Oh, eram horríveis. As pessoas mentiam e enganavam. Éramos terrivelmente infelizes” e o pai acrescenta “Sim, ninguém era caridoso, era um sítio horrível e estamos contentes de o deixar”. “Bem, há muitas pessoas dessas na próxima cidade” disse Sir Richard “temo que também serão infelizes aí”. A família agradeceu e continuaram pelo caminho. Perto do fim do dia encontraram nova família, em tudo semelhante à anterior, e o pai dessa família pergunta “Perdão caros Senhores, estamos a viajar à procura de uma casa nova. Como são as pessoas na próxima cidade?”. “Como eram na cidade de onde vêem?” perguntou mais uma vez Sir Richard. “Oh, éramos tão felizes!” exclamou o pai “As pessoas eram bondosas e calorosas”. Ao que a mãe acrescentou “Foi pena termos vindo embora. Tínhamos tantos amigos!”. “Bem, não se preocupem” disse Sir Richard com uma risada bem afectuosa “na próxima cidade há muitas pessoas semelhantes aos vossos amigos! Acho que serão muito felizes lá!”.
O capítulo em que esta passagem se inseria era dedicado à Graciosidade, que o autor definia como a capacidade para aceitar a mudança.
Vem a propósito esta diatribe toda, de vir tentar responder, nesta crónica, à pergunta que todos os emigrantes ouvem, “E como são as pessoas lá no sítio onde moram? Não são demasiado disto, ou de menos daquilo? E és feliz lá?”.
As pessoas são como as pessoas em qualquer lado, alguns simpáticos outros antipáticos, alguns alegres outros tristes, alguns espertos outros nem por isso, alguns tolerantes e outros menos, alguns interessantes e outros chatos. Os alemães, como povo, têm com certeza muitos defeitos ou predisposições (e hei de explorar alguns a seu tempo), mas também têm muitas qualidades. E enquanto a sociedade funcionar normalmente, isto é, enquanto não descambar para uma autocracia ou um estado sem lei, então a tua felicidade não deve depender das qualidades e defeitos do povo onde estás inserido. O que importa, e o ingrediente fundamental para a tua felicidade enquanto emigrante, é basicamente, qual é a tua atitude?
Quando vim para a Alemanha, o plano era estar cá dois anos a trabalhar num projecto e logo voltar “para casa”. Eu tinha vários preconceitos em relação à Alemanha, e custou-me aceitar a proposta de vir para cá (tinha já antes vivido 3 anos na Holanda e o consenso entre os Holandeses era que os Alemães eram impossíveis). Nessa altura dava-me bastante bem com outros Portugueses que cá estavam e com expatriados de outras nacionalidades. Achava importante, nós os Tugas, estarmos juntos e apoiarmo-nos mutuamente para aliviar a saudade a aguentar a temporada, que se esperava tão breve quanto possível. Faziam-se jantaradas com bacalhaus e feijoadas, e procuravam-se sítios onde comprar umas Super Bocks. Ia-se a Offenbach à tasca Portuguesa, e a Frankfurt aos concertos da Mariza e da Mízia. Aprender alemão, só o mínimo para poder sobreviver e pedir cerveja no bar.
As circunstâncias alteraram-se radicalmente por via de um namoro com uma nativa que descambou em família. De repente dei por mim a chamar casa à cidade onde moro. E a sentir-me turista em Portugal. Resolvi passar uma semana de férias só a aprender a falar alemão para perder o medo de conversar. E resultou. A qualidade de vida, como emigrante, a partir desse momento melhorou dramaticamente.
Por via desta experiência, cheguei à conclusão que há dois modos fundamentais de enfrentar a emigração. O Funcional e o Integral. No modo funcional, tu és capaz de fazer uso dos recursos do país onde estás (trabalhar, ter casa, pagar as contas, ir ao supermercado), mas vives numa bolha de isolamento. Dás-te só com as pessoas de um certo meio. Sentes-te à parte, e vives à espera do regresso. É possível viver assim, desde que o regresso tenha data marcada. Estás expatriado, mas é temporário. Requer esforço e sacrifício. Os problemas diários podem-se tornar catástrofes porque não consegues perceber como têm que ser lidados. Serve talvez para acumular alguma riqueza ou para ganhar valiosa experiência profissional. Não guardarás grandes recordações à parte de umas quantas festas ou eventos, e um ou outro amigo de circunstância. Terás a vida adiada, e nalguns casos haverá o risco desse adiamento poder durar até à reforma, porque de repente terás filhos e eles serão nativos e não te deixaram partir tão cedo quanto planeavas.
Para desfrutar do modo integral, há que quebrar algumas barreiras. E a primeira, e mais importante é a língua. Será sempre difícil, como adulto, a menos que se tenha um talento extraordinário, vir a dominar uma língua nova na perfeição. O meu alemão é muito bom (para conversação), mas ao mesmo tempo muito mau (gramaticamente). O importante é atingir um nível em que se possa sentir confortável no sítio onde se está. Sentir-se incluído nas conversas, e perceber o que se diz na radio e na televisão, e poder ler os jornais e poder fazer telefonemas para resolver assuntos. Com o problema da língua resolvido, quase tudo o resto vem de graça: a cultura, o humor, as relações cordiais, a redução de mal-entendidos. E podes começar a ter uma vida normal e participativa. Passas a perceber o que se passa à tua volta. O porquê de as coisas serem como são. Passas a ser tratado como um concidadão e não como um estranho, com tudo o que de bom e menos bom que possa estar associado.
Há é claro ainda o modo disfuncional, que pode ser resultado ou de total inabilidade em funcionar no novo país ou em grande azar nas circunstâncias com que se depara à chegada. Neste caso, nada ou pouco resulta. Assumo que quem está nessa situação tenha o bom senso de voltar a Portugal o mais rápido possível. Tenho visto alguns casos de casais que vêm para o estrangeiro porque um deles enfrenta um desafio profissional mas o outro fica em casa, desocupado ou a tomar conta das crianças, com pouco ou nenhum contacto social, incapaz de usar a língua, e isso dá muitas vezes em tremenda infelicidade e fracasso da experiência.
A partir de uma certa altura deixei de investir tanto nas relações com os portugueses que cá estavam à condição de temporários, e que choravam saudosos da pátria, para poder pôr mais energia nas relações mais duradouras com nativos e outros emigrantes integrais que escolheram levar uma vida normal por cá.
Mesmo que nunca venha a ser um alemão de gema, e mesmo que continue a sofrer todos os estigmas da condição de emigrante (ver crónica do Vasco Pinhol) – o que espero continuar a fazer com a melhor das graciosidades – passados quase 14 anos, “voltar a casa”, para mim e por enquanto, significa regressar aqui, ao apartamento onde moro com a minha família, na cidade de Darmstadt, na Alemanha.
– Dias sem ir a Portugal… vou hoje!
– Nas notícias por aqui… discurso de Trump no Congresso.
– Sabia que por cá… o clube da nossa cidade, Darmstadt, segue em último na tabela da Bundesliga, e só um milagre o pode salvar da descida de divisão. Milagres é algo a que o clube já nos habituou, de maneira que seguimos esperançados
– Um número surpreendente: 7.862.038 residentes na Alemanha em 2015 nascidos no estrangeiro (9,7% da população total), dos quais 110.384 nasceram em Portugal (fonte) – cerca de 3000 novos portugueses chegaram cá nesse ano, desejo-lhes uma boa integração e muita graciosidade.