A newsletter da agência de viagens foi decisiva para decidir o destino de férias. Decidi fotocopiar um plano de treinos de uma revista francesa em terceira mão, largada no escritório da equipa de emergência. Iria treinar para correr os 10 km em menos de uma hora no tal destino.
Durante cerca de dois meses, voltei três vezes por semana à estrada (Rua, como gosto intimamente de lhe chamar) que não tem início nem fim, onde camiões sem faróis cospem fumo negro para cima e para baixo enquanto transportam, a custo, contentores.
A Rua acompanha o Rio Yangon e é ladeada por tapumes publicitários que escondem vários portos de carga e de transporte de passageiros, naquela que é a maior cidade de Myanmar, despromovida de capital em 2006. Talvez a única estrada de toda Yangon que não é tropeçada por outras ruas ou vias. A única onde se pode correr sem olhar para a direita e esquerda. Para a frente (e para baixo, mas já lá voltaremos) é o caminho.
“Hello”, Adele. Decidi que não iria treinar sozinha. Tal resolução desportiva merecia uma banda sonora, daquelas que fazem as pernas voarem e leva a mente a acreditar que está prestes a bater o recorde mundial feminino dos 10 km (que já agora está nos 29 minutos e picos). Ia ser acompanhada pelos Hits Semanais 2016 do Spotify (dispenso comentários jocosos. Ainda acredito que musiquinha de top comercial faz aumentar recordes pessoais).
“Once I was seven Years old”, canta Lukas Graham. Quando eu tinha sete anos já tinha visto no televisor de Ovar Carlos Lopes cortar a meta em primeiro lugar nos Jogos Olímpicos de Los Angeles 84 e já sonhava em participar nas Olimpíadas. Pelos vistos, trinta anos depois, a ilusão (e a insanidade) ainda persiste.
Voltando ao olhar para baixo. Logo nos primeiros treinos, percebi que o melhor era ir alternando: olhar para a frente e espreitar para baixo, para os lados e para trás. A decisão foi tomada abruptamente depois de uma razatana-tipo-gato ter passado rente aos pés, fazendo-me saltar para o meio da estrada, onde um camião-de-um-olho-só quase me esborrachou. Como diria Agir, “Impossível não olhar para trás. Ela Parte-me o Pescoço”.
Por vezes não era preciso chegar à Rua. Num dos treinos das cinco e meia da manhã, encontrei a primeira ratazana à porta do elevador do meu prédio, na Rua Pansodan (que concentra o maior número de edifícios coloniais de Yangon, marca dos 124 anos de colonização britânica), anunciando o tom do treino desse dia. Essa ia ser uma constante de todas as semanas. Por vezes, decidia contá-las, enquanto tentava intercalar inspiração e expiração. O recorde ficou estabelecido em oito ratos e cinco ratazanas em menos de uma hora (a contagem de cães vadios é bem mais complexa já que envolve números mais elevados e diferentes categorias: individual, matilha e/ou agressivos ou passivos. Um processo arrojado com efeitos directos na respiração, já demasiado ofegante).
“Sex”, Cheat Codes. Os camiões-de-um-olho-só param nas bermas para pernoitar, naquela que também é a minha pista. De manhã via os motoristas a lavar os dentes e a cuspir para os meus pés. À noite, cospem os restos das folhas de bétel e nozes que mascam toda (um)a vida, pintando-lhes os dentes de vermelho e manchando e pincelando as ruas de cuspidelas. Ficam ali parados à espera da chegada dos cargueiros para carregar a mercadoria e começar a percorrer os 14 estados e regiões do país de 53 milhões de habitantes e 677 mil quilómetros quadrados de superfície. Enquanto esperam, compram sexo da Rua. Várias vezes, tropecei nas pernas delgadas de adolescentes ao descerem entorpecidas das cabines dos camiões-de-um-olho-só. Embora com menos frequência, também me cruzei com rapazes de cara tímida parados na berma a pedir boleia aos camionistas a troco de sexo barato.
“Locked Away”, R.City (pausa para duas séries de 5x 20 segundos em full speed, com intervalo de dois minutos. Agora não posso falar)
Por vezes, corpos caídos no chão. O primeiro que vi parecia morto. Não parei. Juro que não foi de propósito. Como se a Rua e o Spotify me tirassem da realidade. Como se eu estivesse a sobrevoar toda aquela realidade mundana. Mas não estava. Estava a correr lentamente, a mais de seis minutos por km e, pelos vistos, o oxigénio não estava a chegar ao meu cérebro. Para meu alívio (e falsa desculpa), na volta vi dois homens a carregarem o tal corpo profundamente adormecido, provavelmente por culpa do álcool de arroz, muito comum nas comunidades migratórias que vivem do outro lado do rio e utilizam um dos portos da Rua para as travessias diárias em busca frustrada de trabalho precário. Foi o primeiro de vários corpos ébrios que vi caídos com maior ou menor apoio nas sarjetas. Nunca parei. “I didn’t mean it”, Aurea.
De facto, as bermas da Rua são locais concorridos. Meninos e meninas, menores de idade, de uma sociedade muito conservadora (e perigosamente obcecada pelo Budismo) aqui namoram às escondidas. Sentam-se no chão, junto aos buracos de escoamento de água, há muito entupidos de lixo, onde os pais, se não forem camionistas, nunca os vão apanhar. Entre palavras já com sabor a noz e bétel sussurradas ao ouvido, os meninos colocam a mão debaixo do longhi (saia comprida tradicional) das meninas e vão subindo por ali acima, naquela que parece ser a primeira vez. “How Deep is Your Love”, de Calvin Harris & Disciples.
Escondidos por ali estão também grupos de adolescentes que bebem pelo gargalo os 750 ml de Myanmar Beer, e encadeiam cigarros Red Ruby atrás de cigarros, frutos ainda proibidos fora da Rua. Por vezes, trazem guitarra e ficam ali a dedilhar por entre os fumos e os roncares dos camiões. “La Gozadera”, Marc Anthony.
A imagem de um rosto estrangeiro (e rosado, e transpirado) a correr por ali para cima e para baixo deve ser uma ideia peregrina na Rua. Por treino, pelo menos um grupo de rapazes (o recorde vai em cinco) interrompia a festa para correr ao meu lado por alguns (longos) metros, também eles vestidos com os tradicionais longhi e chinelos. O que me fazia aumentar a velocidade para não mostrar parte fraca e, claro, desarranjando o ritmo da respiração.
“Dizer que não”, Dengaz. Pára tudo! É a minha preferida. “Eu queria dizer que não, mas não consigo” e as pernas acordam e lá vou eu a entrar na última volta, a aumentar o ritmo, e finalmente entrar no estádio, onde vou cortar a meta com um qualquer recorde fora de série. Resultado: respiração totalmente descontrolada até à música seguinte, que me faz regressar à Rua e à realidade que tem um tempo miserável por km.
“Faded”, Alan Walker. De todas as Vidas da Rua, aquele olhar foi o que mais me deteve. Perdido, injectava-se lentamente saciando a ressaca, no preciso momento em que eu passava. Enquanto aquilo invadia-lhe as veias, deixou espetada a seringa enquanto gozava o momento de olhos fechados e cabeça erguida ao céu negro. A cena não é rara no segundo maior produtor de ópio do mundo e um dos líderes de tráfico na região. Nunca consegui deixar de olhar para trás.
Melhor uso dado à agulha era feito a uns dois km dali, junto a um dos portos de passageiros, onde por meia dúzia de tostões (que em moeda local corresponde a alguns milhares de Kyats) qualquer um pode sentar-se num banco de plástico a roçar o chão, escolher o modelo da tatuagem, colocar a pele debaixo de um candeeiro de cabeceira e esperar que o tatuador não se atrapalhe com o pó da rua e o vai-e-vem dos passageiros de barcos, o som do mini-gerador, e complete sem esborratar a tatuagem encomendada.
“Chandelier”, Sia. A Rua esconde menos segredos com o romper da luz do dia. Os camiões partem para o porto de contentores e daí seguem outras estradas, dando lugar a carrinhas de caixa aberta que trazem os produtos frescos acabados de chegar do outro lado do rio. Os produtos são mesmo ali descarregados nas bermas e distribuídos por riquexós e bicicletas que de seguida vão percorrer os mercados da cidade. Ali próximo, os mesmos homens de todas as manhãs dão o seu passeio madrugador com sacos de restos de comida, que vão distribuindo pelas centenas de cães vadios da Rua.
Mas Medo da Rua por quê? Afinal, toda esta correria tinha como razão quase exclusiva a ida à Coreia do Norte para participar na maratona de Pyongyang. Seria medo de não saber o que fazer quando todos os destinos de fuga se esgotarem e nada mais restar, a não ser um emprego cercado por imbecis que nem sequer sabem ou querem correr?
“Adventure of a lifetime”, ColdPlay.
Nota ao Spotify: em dois meses, os Hits Semanais nunca se alteraram. Somos assim tantos corredores? Quem consegue ouvir Justin Bieber todo este tempo? Pois no que depender de mim, vou criar para um nova selecção musical no Spotify: Hits-Musicais-que –Não-te-Envergonham-Publicamente.
VISTO DE FORA:
Dias sem ir a Portugal: 50
Nas notícias por aqui: Foi preso um terceiro suspeito do assassinato à queima-roupa do famoso advogado e conselheiro do governo de Aung San Suu Kyi. O ex-oficial do exército terá mandado matar o também activista dos direitos da minoria muçulmana e defensor da mudança constitucional para retirar poderes aos militares.
Um número surpreendente: Não há números oficiais, mas estima-se que existam qualquer coisa como 300,000 cães vadios só em Yangon (sim, 300 mil!). As autoridades vacilam entre a total passividade e medidas extremas de envenamento de matilhas de bairros inteiros.
Sabia que por cá: Direitos de autor foram uma miragem em Myanmar durante décadas. A maioria dos artistas cantava canções famosas internacionais, alterando a letra para birmanês. Os discos eram vendidos como originais e supostamente muitos jovens cantores, por não terem contacto com o mundo exterior durante os anos da Junta Militar, desconheciam o que os produtores lhes davam para cantar.