A situação económica da Índia no final de 2016 registou algo que nunca tinha visto acontecer em nenhum dos países onde vivi e representou, a curto prazo, alguns constrangimentos para os comuns mortais que não fazem circular o famoso ‘black money’ no dia-a-dia. Todos dizem que esta época vai ficar para a história.
De um dia para o outro, e sem aviso prévio, Narendra Modi, o primeiro-ministro da Índia, deu início ao processo de desmonetização com o objetivo de reduzir a quantidade de dinheiro sujo que circula no país. Na noite de 8 para 9 de novembro, perto das 22 horas, o governo emitiu um comunicado ‘surpresa’ que alertava para o facto de, a partir da meia noite, todas as notas de 1000 e 500 rupias deixarem de ser aceites em qualquer negócio, loja, serviço ou pagamento em dinheiro. As únicas exceções consideradas foram os hospitais e as bombas de gasolina, que continuaram a aceitar as antigas notas, até ao dia 31 de dezembro.
Para ser mais fácil entender o grande impacto que este comunicado teve na sociedade, é preciso saber que, na Índia, existiam apenas 5 notas: de 10 rupias, 50 rupias, 100 rupias, 500 rupias e 1000 rupias. As notas de 10 rupias equivalem a 13 cêntimos, as de 50 rupias a 70 cêntimos, as de 100 rupias a 1 euro e 40 cêntimos, as de 500 rupias a 6 euros e 96 cêntimos e as de 1000 rupias a 13 euros e 93 cêntimos. Então, da noite para o dia, a população indiana passou a poder apenas fazer pagamentos com notas que valem não mais que 1 euro e 40 cêntimos. As maiores notas que circulavam no mercado foram abolidas e deixaram de poder ser utilizadas por uns dias.
Para quem tinha grandes quantidades de dinheiro consigo, isto representou um problema sério e a população ficou em alerta. Durante a primeira semana, várias notícias não verdadeiras começaram também a circular, porque, como em qualquer história, existem sempre os boatos. A população ficou, durante os primeiros dias, sem saber o que era verdade ou mentira ou o que ia realmente acontecer de seguida.
De acordo com o comunicado, todos tinham até dia 31 de dezembro para depositarem as notas no banco de forma a poderem utilizar o dinheiro mais tarde, quando as novas notas entrassem em circulação, sendo que o valor máximo autorizado para depósito sem justificação passou a ser 50.000 rupias (perto de 700 euros). Quem tinha bastante dinheiro guardado debaixo do colchão, ficou com as mãos atadas. As novas notas de 500 e 2000 rupias iriam entrar em circulação nos dias seguintes, mas, até isso acontecer, foi o caos!
Modi estabeleceu também algumas medidas relativas aos multibancos: durante dois dias úteis os bancos iriam permanecer encerrados. A medida foi lançada numa terça-feira à noite, sendo que na sexta, dia 11, era feriado nacional; assim, os bancos estariam fechados até à segunda-feira seguinte, dia 14 de novembro, facto que piorou em muito a situação. A partir da meia-noite, ou seja, duas horas depois do anúncio ter sido feito, as notas não poderiam mais ser aceites ou levantadas em multibanco, sendo que começou a correria para levantar o máximo possível em notas de 100 rupias; e o máximo possível para levantamento passou a ser 2500 rupias por pessoa, por dia, o que limitava em muito a quantidade de dinheiro disponível por indivíduo.
A partir de 9 de novembro de 2016, todos os multibancos e bancos da Índia passaram a apresentar toda uma diferente situação, pela primeira vez vista no país: filas de metros e metros juntaram-se e a maioria dos multibancos estavam sem dinheiro disponível. Houve uma correria gigante aos bancos, para depositar todas as notas antigas e filas formaram-se em todas as cidades.
No meu caso, estive alguns dias sem conseguir utilizar o multibanco por nunca encontrar um com dinheiro, passei a pagar tudo com cartão, gastei as minhas últimas notas de 500 e 1000 rupias durante as semanas que se seguiram nos postos de gasolina para não ter que ir ao banco e esperar na fila e passei a ter a conta associada à aplicação Uber, para não ter de pagar em dinheiro sempre que apanhava um táxi.
Acredito que, quando comparada com outros casos, esta medida teve de facto um impacto mínimo no meu dia-a-dia, mas acabou por afetar todas as classes e serviços: pobres, ricos, empresas, particulares, negócios estabelecidos e negócios de rua. Criaram-se várias piadas generalizadas e partilhadas online por todos, como pessoas que não sabiam o que fazer com as velhas notas, então usavam-nas como bloco de apontamentos ou como suporte para castanhas assadas, ou o caso do casal que começou a namorar na fila do banco, e que terminou a relação na mesma fila, etc…
As grandes empresas foram as que, ainda assim, mais sofreram com toda a situação, tendo em conta a quantidade de dinheiro com que têm de lidar diariamente, quer para manter o negócio quer para pagar aos trabalhadores. Além disso, também os viajantes e turistas perderam algum dinheiro ao terem que fazer de novo a conversão das notas para euros ou dólares.
Modi passou a ser visto como um herói, ao utilizar uma medida drástica que ninguém esperava – ou pelo menos que a maior parte da população não esperava. O processo de desmonetização surpreendeu a maioria do país, incluindo partidos políticos e grande parte da população passou a demonstrar mais admiração pelo primeiro-ministro. A grande maioria considerou esta decisão como o primeiro grande passo para eliminar a corrupção e o dinheiro sujo que circula na Índia.
De acordo com as notícias do país, nunca se tinha visto tanto dinheiro a ser justificado de todas as maneiras possíveis e imagináveis, muitas vezes contando com a ajuda de bancos corruptos. Muitos pensam e afirmam que nada vai mudar e que tudo continuará no rumo que seguia, com os corruptos a serem corruptos com ou sem notas de 500 e 1000 rupias. No entando, a maioria mostrou apoiar Narendra Modi na luta contra as injustiças que circulam e contra os que fogem constantemente à lei.
Agora, dois meses depois, a situação acalmou, finalmente. As pessoas não podem depositar mais notas velhas e já não há tantas filas nos bancos. Os multibancos também começaram a ter menos filas e mais dinheiro disponível. No entando, ainda nem tudo voltou ao normal sendo que a quantidade de dinheiro a circular ainda não é suficiente para que todos consigam encontrar um multibanco com dinheiro em qualquer altura, como acontecia antes de 8 de novembro.
Espera-se que tudo volte à normalidade até ao final do mês de março e espera-se também que os mafiosos do país não tenham conseguido depositar todo o dinheiro sujo que tinham guardado. Até lá, todos vamos continuar a esperar na fila, se realmente queremos ter algum dinheiro na carteira!
VISTO DE FORA
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Nas notícias por aqui: “Depois de 50 dias, conheça os resultados da desmonetização de Modi” – praticamente todos os jornais e sites jornalísticos publicaram um artigo deste género no inicio de Janeiro.
Sabia que por cá… Até ao dia 8 de novembro, 90% do dinheiro que circulava na Índia era notas e moedas, facto que ajudou em muito a instalar o caos.
Um número surpreendente: A nova nota mais alta autorizada na Índia tem o valor de 2000 rupias, que equivale a 28 euros.