Se quiséssemos fazer um teste aos emigrantes e lançássemos a perguntar “qual é a coisa que mais custa no processo da emigração?”, quase que apostaria a minha vida em como a esmagadora maioria dos inquiridos responderia “a saudade”. Tão nossa. Tão sentida que até merece ser escrita como nome próprio. A Saudade.
A ocupar o primeiro lugar no pódio, a Senhora Saudade mostra-se feroz para quem não pode ver quem ama todos os dias, ou apenas no dia em que lhe apetecer. Estar longe de quem amamos custa muito. Estar longe dos nossos familiares, dos nossos amigos, dos que nos viram crescer, daqueles que vimos crescer dói, dói tanto que nos faz querer desistir, faz-nos questionar de todas as decisões até ali tomadas. Faz-nos chorar. Sozinhos e em surdina para que ninguém nos perturbe o momento dramático. Mas é também ela que nos dá força para aguentar “só mais um bocadinho”. A saudade faz-nos sentir humanos e, num mundo que cada vez mais se mostra selvagem, em alguns casos, assume funções de prancha de salvação.
Em pequena descobri uma teoria: a do hábito. Dizia alguém que se repetirmos determinado comportamento durante 23 dias seguidos esse comportamento torna-se um hábito. Passaram-se dois anos e nove meses desde que cheguei a Macau e eu habituei-me à saudade. Não nego, nem escondo. Habituei-me e isso faz-me ver o mundo de uma forma completamente diferente, mas, principalmente, senti-lo. A saudade aqui continua mas agora está disfarçada, parece que se afasta para depois voltar com um letreiro luminoso às costas “não te livras de mim assim”. É uma saudade adulta, daquelas que arranjou maturidade por aí, nas voltas que foi dando. Faz-se notar de forma descarada em determinadas alturas, principalmente nesta, no Natal. Traz consigo memórias de mesas cheias de sorrisos e calor dos abraços. Depois volta a desaparecer. Ou a esconder-se.
No entanto a saudade tem uma prima. Muito próxima. Melhores amigas, até. Poucas vezes ganhou palco, menos vezes se expôs, mas está ali sempre presente.
Quem não vive a emigração não conhece esta prima da saudade. Os portugueses que vivem em Macau têm – ou pelo menos deviam ter – perfeita noção de uma coisa: grande parte das relações têm um prazo. Entenda-se: presença física. Macau tem esta característica de trazer e levar pessoas. Funciona como uma onda que de vez em quando vai, outras vem e, com ela, as pessoas.
Quando cheguei a Macau embati, de corpo inteiro, não foi apenas um toque, espetei-me com velocidade e intensidade contra estes muros que as pessoas, em sua defesa, criam. Muitos grupos de amigos estavam criados e furar essas redes tornou-se das tarefas mais árduas que tive nos últimos anos. Um dia, já a desistir da causa, uma colega de profissão olha-me e como se, de forma simbólica, retirasse uma máscara diz-me: “as pessoas não se querem magoar. Já viste que estamos quatro ou cinco anos a criar uma relação e de um momento para o outro a pessoa vai embora? E tu sabes como são as relações em Macau.”
Sim, eu sei. As relações em Macau são intensas, acontecem à velocidade da luz. Gosta-se muito logo, há uma entrega muito pronta e imediata. Quem aqui está, vem, por norma, sozinho. Não tem os seus. E quando vocês, desse lado, veem as nossas fotografias com títulos como “família de Macau” é mesmo real e muito puro. Em Macau vivemos como se não houvesse tempo. Somos logo muito para o outro e recebemos em igual modo.
O que não estamos a contar é na hora da partida. Nunca se pensa que este estado é provisório e quando damos por nós estamos ali, a sofrer com a partida de alguém tão querido. Como se já não nos bastasse a Saudade de casa agora também sentimos com os de cá.
Este mês duas pessoas muito importantes fecham o capítulo de Macau e a Saudade veio em força. Desta vez o letreiro piscava e reinava com a minha tristeza como se me dissesse “é de um lado e do outro”.
Comentava isto com uma amiga local. Olhava-me com aquela cara sempre atenta de quem não quer perder uma letra do meu português mais lento. Pensei que não me estava a perceber. Apesar dos portugueses terem deixado tanta coisa à sua Macau podiam, pensei, ter levado a Saudade.
Disse-lhe: a saudade é uma coisa muito portuguesa, (confesso que não acredito nisto, mas gosto sempre de nos destacar desta forma), talvez não me estejas a perceber.
Deixou-me sem chão quando sorriu e disse: eu sei, o que achas que sentimos quando vocês portugueses vão embora depois de tanto tempo connosco?
Afinal, a Saudade ainda cá mora.
Feliz Natal.
VISTO DE FORA
Dias sem ir a Portugal: 123.
Nas notícias por aqui: A Escola Portuguesa de Macau é a melhor escola portuguesa fora de Portugal de acordo com dados divulgados na semana passada pelo Ministério da Educação.
Sabia que por cá… apesar das famílias chinesas não festejarem o natal, muitas famílias macaenses fazem-no. A herança portuguesa permite que ainda seja feriado. Para além das luzes dos casinos as ruas estão enfeitadas e há música de natal por todo o lado.
Um número surpreendente: já passaram 17 anos desde que vimos as cerimónias na RTP da transferência da soberania de Portugal à China.